Cara Gente Branca – série obrigatória!

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Resenha de João Gabriel de Oliveira
A internet é uma ferramenta que, no século XXI, deu voz a diversos grupos que tinham dificuldade de terem suas vozes ouvidas em larga escala. Não é à toa hoje termos tantas discussões sobre assuntos como machismo, racismo e as diversas formas de LGBTfobia. E com as redes sociais, esses assuntos se tornaram tão parte de nosso cotidiano, que é estranho quando vamos consumir alguma obra de cultura pop e não vemos esses assuntos sendo discutidos dentro da obra. Ela fica meio deslocada do tempo, e para os mais críticos (e eu assumo ser um destes), dá a impressão de estar deliberadamente tentando esconder algo. Jogar pra baixo do tapete, sabe? Bem, isso é exatamente o que a nova série original da Netflix “Cara Gente Branca” não faz.

Na série vemos um grupo de alunos negros de uma universidade bem conceituada dos EUA lidando… bem, lidando com o fato de serem alunos negros em uma universidade bem conceituada dos EUA! Inicialmente, quando a série foi anunciada e divulgado os trailers, a impressão geral que se teve é de que a série trataria do assunto de forma bem panfletária, o que causou um “boicote” de certas pessoas (principalmente nos EUA) para com a Netflix, gerando alguns cancelamentos de assinatura em massa. Ao assistir o primeiro episódio, pelo menos para mim, essa impressão foi confirmada. É um episódio realmente bem panfletário. E eu adorei! Não que eu ache que toda obra precise ser necessariamente assim, mas eu sinto uma aversão de muitas pessoas quando obras como essa são apresentadas ao público, como se ao estreitar as relações entre o artístico e a realidade, ela perdesse seu status como obra artística “de verdade”.

Aí alguém pode me perguntar: “quer dizer que, mesmo que eu me interesse pelo assunto, mas não goste de uma obra tão direta como essa, eu não vou gostar?”. E eu arriscaria dizer que “sim, você vai”. Digo isso pois no segundo episódio vemos praticamente os mesmos acontecimentos do primeiro, porém na visão de outro personagem. Essa mudança de perspectiva muda muito o tom da série, inclusive fazendo-a menos panfletária e tornando-a mais intimista neste episódio. E nos seguintes vamos entendendo que essa troca de perspectiva faz parte da narrativa de toda a temporada, e que em cada perspectiva somos levados a ver seus acontecimentos com um enfoque diferente, de acordo com a personalidade de cada personagem. Ora mais politizada, ora mais intimista.

E é justamente essa dinâmica entre várias perspectivas que é o toque especial da série. Não importa se você é negro(a), se você tem vivência como um(a) negro(a), você não tem TODAS as vivências possíveis. E sim, por mais óbvio que possa parecer muitas pessoas se esquecem que ser negro(a) não é uma vivência única. A questão de raça trespassa outras questões como classe, gênero e sexualidade, para citar algumas. E essa pluralidade é mostrada de maneira magistral na série, com pontos de vista bem específicos.

A sensibilidade com a qual os assuntos são tratados é bem dosada, alternando momentos de muita seriedade e tensão com outros bem leves e divertidos. A série não está livre da utilização de vários estereótipos (inclusive alguns não-negros, como estereótipos de asiáticos por exemplo), mas aqui sua utilização parece ter um significado maior do que apenas simplificar o personagem, além de vários momentos onde estes estereótipos são colocados à prova e até subvertidos de alguma maneira.

Para finalizar, mas sem querer entrar em grandes “spoilers”, não faltará momentos para refletirmos sobre o racismo institucionalizado durante todos os episódios, e ao assistir a cena final onde todos os personagens estão sentados em uma sala assistindo uma série de TV e vê-los olhando diretamente para nós, devido à uma tomada muito bem produzida onde a tela em que eles estão assistindo se confunde com a nossa tela, e a divisão entre real e ficcional começa a se desfazer, não há como não imaginar quais personagens estamos sendo em nossa série da vida real, no que estamos errando, quais são os nossos acertos, e o que estamos fazendo perante tudo isso. Com um formato de capítulos bem interessante, uma linguagem moderna e um assunto mais do que pertinente, “Cara Gente Branca” é uma obra que se torna essencial para quem está disposto a entender como é perpetuado e institucionalizado este sistema excludente em que vivemos.

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Fã incondicional de quadrinhos, o João Gabriel é meu amigo no grupo fechado do site Balão de Fala. É apaixonado por semiótica, pesquisador iniciante de Análise do Discurso em HQs, curioso sobre tudo que envolve a industria cultural e tem o sonho de um dia poder viver apenas como educador, fomentando a leitura crítica de obras da cultura pop em geral (mas por enquanto paga suas contas trabalhando com TI mesmo). Um dos participantes mais ativos no grupo, sempre colabora com comentários super pertinentes quando o assunto é uma de suas HQ favoritas. Obrigada (de novo!rs), João!

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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