Django Livre – O balde de água fria de Tarantino na sociedade americana

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O improvável aconteceu bem diante dos meus olhos e de milhões de outras pessoas, diga-se de passagem. O reinado mais democrático desta terra, que tinha como coroa um permanente afro, como princesa um par de pés sedutores, seu cavaleiro um boxeador empunhando uma katana, sua lenda a ressurreição, não pela fé, mas por um shot de adrenalina, foi abalado. Eis que surge um afro maior ainda, tomadas de ação que dariam uma pintura cada, além da sensibilidade e maestria de tocar em um assunto tabu – a escravidão.

Nos primeiros segundos de uma película, quando vemos o nome Quentin Tarantino, já sabemos o que esperar. Humor ácido, escrachado (ou sem graça, dependendo do nível Bozo do telespectador), tiro, porrada e bomba no melhor estilo filme B. Algo como se Michelangelo tivesse uma câmera e fosse apaixonado por zumbis. Diálogos que vão além da criatividade sã e, obviamente, o mais importante dos elementos tarantinescos – aquela sensação, aquela, tu a conheces bem, angustiante, que te segura pelo estômago, te faz apertar firme os braços da poltrona, enquanto esticas o pescoço e fita fixamente a tela a indagar: “Puta merda, que diabos acontecerá agora?”.

Meu cérebro juvenil e de exigência questionável, necessitado de sua dose de ingredientes básicos da fórmula QT, convidou-me a assistir Django, o D é mudo, Livre. Fiquei boquiaberto com o que vi, muito feliz também. Pois há verdades que nesse mundo se confirmam como tais e uma delas é que ao tempo ninguém escapa. Dele, Quentin Tarantino recebeu de presente não só alguns quilos a mais, que se manifestaram numa respeitosa pança, mas também maturidade, perspicácia e capacidade de, através de seus filmes, questionar pontos sensíveis ao debate social, gerando divagações que passariam sabe-se lá quantas décadas (e que eu esteja errado), talvez uma vida , sem ver a luz do dia na mente de algumas pessoas.

Não irei me ater ao conteúdo pop, exaltar as cenas épicas, piadas etc., pois esses são facilmente inteligíveis, e já os conhecemos antes mesmo de assistir o filme. Como sempre há uma homenagem às animações japonesas, em que morte do inimigo pelas mãos de um samurai hábil é contada não através do golpe, mas pelo jorro de sangue que cai sobre as pétalas da árvore de cerejeiras, manchando-as de vermelho. Dedico as próximas linhas à questões mais latentes do filme, que, sutilmente introduzidas, entre uma gargalhada e outra, entre uma explosão e outra, vão dar o que falar. Aqui iniciam-se também os spoilers.

Passa batido aos olhos do espectador, primeiramente, o anacronismo comportamental do herói e seu coadjuvante. Django é um escravo que odeia a escravidão com todas as suas forças, enxerga-a como se fosse uma grande antítese moral e um absurdo social. Schultz, seu parceiro, também revela sentir ojeriza à prática. Mas devemos fazer um paralelo com a realidade e a verdade é que, estávamos no século XIX, período no qual não havia esse esclarecimento. A mentalidade de enxergar a escravidão como um absurdo moral é cria do século XX. Se pensassem como verdadeiros homens da época, o mais provável seria que ter-na-iam visto como algo ruim, mas que, infelizmente, fazia parte do dia-a-dia sofrido. Isso porque nunca haviam experimentado uma realidade diferente. Assim como hoje encaramos com olhos tristes, mas,  acostumados, o fato de crianças de treze anos empunharem armas e se filiarem ao crime, ou outras ainda mais jovens, que fazem da rua a sua casa, à margem do sol, sob a vigília da Lua, se entorpecendo, de seja lá qual for a substância que, por alguns segundos, irá aliviar sua dor. E, mesmo assim, somos incapazes de derramar lágrima.

É possível, a partir desse momento, tirar resposta para uma pergunta que me deixou quebrando a cabeça durante e após o filme. Refiro-me à cena em que o personagem de Leonardo Di Caprio, Mr. Candie, senhor de uma próspera plantation, indaga a Django – “Durante 50 anos, um criado negro, empunhando uma gilete afiada, barbeou meu pai. Como pode nunca ter tentado matá-lo?” A imposição e dominação através do medo e tortura são argumentos insuficientes para resolver a questão. Eis que, além disso, como uma névoa fina que paira acima, havia a naturalização do comportamento escravista. Era uma conduta aceitável e juridicamente regulada.

Mr. Candie, entretanto, responde a pergunta utilizando-se do crânio do dito criado, já falecido. Cerra-o, expondo sua parte interior, aponta para três marcas que, segundo ele, são responsáveis pela natureza subserviente do negro, tornando-o mais submisso que as demais etnias. Uma bela crítica aos pensamentos científicos e filosóficos que eram usados para justificar a sociedade escravista. Esse pensamento, especificamente, chama-se frenologia. E, fique atento, que o absurdo espreita à tua porta – agora, no mundo real, mas na mesma nação em que se passa o filme Django Livre (o D é mudo) em 1994, os cientistas políticos e sociais Richard Herrnstein e Charles Murray, publicaram um livro chamado The Bell Curve, o qual dizia que o QI dos negros era menor que dos outros povos. Esse seria o motivo para não terem êxito em suas realizações e ocuparem as camadas mais baixas da pirâmide social e econômica. Se você é daqueles que faz um esforço para crer no bom senso inerente da humanidade, tome teu balde de pedras de gelo, eis que Charles Murray é ouvido e considerado especialista em política social – suas ideias conquistam, ainda hoje, muitos adeptos.

Voltando ao anacronismo comportamental dos heróis, se esse passa despercebido, não é à toa. Quentin fez um excelente trabalho ao evocar os horrores da escravidão. Pôs a voar sua imaginação pitoresca para cenas de violência, em meio a exageros e matanças que causavam risadas aos espectadores. Havia momentos em que a tela exibia apenas uma fração do horror que realmente aconteceu nesse período e todos no cinema se calavam. Essa sensação ganhou até jargão na imprensa, Django moment, pode procurar no Google. O que, em duas horas e quarenta minutos pareceu chocante, aconteceu durante duzentos e quarenta anos, sem censura televisiva.

Tarantino resolveu brincar com a moralidade do público. Chocou à todos com cenas fortes de homens brancos oprimindo negros das mais violentas formas. Entreteteve à todos com o herói negão matando brancos das mais violentas formas. A qual morte cabe o riso, a qual morte cabe o choro? Pergunta de difícil resposta. Os personagens do filme não caminham de um lado ou de outro da linha do bem e do mal. Não existe uma moralidade facilmente identificável.

Os escravocratas não são maus, os heróis não são bons. O observador mais cuidadoso irá notar que, ao invés de preto vs. branco, há um duelo de tons de cinza. O que move os personagens, são seus anseios, não sua vontade de fazer o bem ou o mal, mas seu desejo de satisfação pessoal, mascarado em motivações auto proclamadas altruístas ou indispensáveis quando para se auto justificar, mesquinhas e cruéis quando para desqualificar as atitudes do inimigo.

Schultz faz Django passar por cima de suas barreiras morais. Posteriormente, é Django quem força os limites de Schultz e ele aceita. Acompanhamos a decadência progressiva do herói, tão focado em salvar sua esposa, corrompendo sua própria alma ao compactuar com as atrocidades do inimigo que tanto abominava. Não importa, ele terá sua amada a qualquer preço. No fim, todos sujam igualmente as mãos – Schultz traumatiza uma criança por recompensa, Django permite a morte brutal de um cativo, Mr. Candie (Di Caprio) abusa de escravos para ganhar riquezas.

Por falar em Schultz, creio que ele tenha sido a verdadeira piada de mau gosto que Tarantino deixou aos rednecks. Não sei se defino-a como sutil ou escrachada, para falar verdadeiramente, não sei nem se interpretei a piada corretamente. Talvez algum estudioso das relações germânico-americanas possa ter captado o real sentido da coisa. Aos meus estiguimatizados e hipermetropiados olhos ela é simples;
Um alemão matando mais americanos, não bastassem os aqui e ali, cerca de 400 mil, que morreram frente a bandeira nazista. Achaste graça? Teve gente que não.

É possível, ainda, aplicar uma alegoria bíblica no comportamento dos protagonistas. Ao começarem sua jornada com objetivos verdadeiros e bons, são afortunados e recompensados, tendo bem aventuranças em suas empreitadas e escapando ilesos de enrascadas. Mas, quando praticam atos detestáveis, com a mente no seu objeto de desejo, passam a caminhar no mal e, por isso, sofrem grandes consequências. São capturados, torturados, esse é seu purgatório. Só dando a vida por aquilo que é genuinamente bom, escaparão aos céus, e ambos o fazem. Schultz ao matar Mr. Candie, Django ao se entregar ao inimigo.

Uma rápida palavra, por fim, sobre a cena da Ku Klux Klan. Como bem me iluminou um grande amigo, a situação cômica com que é tratada a organização vem com um intuito. Ilustra de fato a mentalidade, inteligência e perspicácia dos membros que compunham e compartilhavam a ideologia do clã, ou seja, um bando de fazendeiros bitolados. O filme retrata seu primeiro surgimento, que vai do fim de 1860 a início de 1870. O clã, como o conhecemos hoje, só se realizou a partir de 1915.

Dito tudo isso, ou quase nada, a variar pela estima que carregas do homem que vos escreve, concluo com uma ridícula frase. Eis que, no momento, é única que me vem, e às vezes a vida tem disso – improvisar com o que temos, como se diz por aí e aqui também. Pegar os palitos de dente e fazer uma barraca, como direi eu, velhinho daqui a alguns anos, mesmo que depois venham  chutar o pau dela . Até calhou de falarmos de ditos e dizeres, tem tudo a ver com a frase ridícula a que me refiro. Houve quem disseste que Tarantino era racista.

Administrador Iluminerd

A mais estranha figura nesse grupo: não posta, não participa de podcast, mas foi ele quem uniu todas as pessoas dessa bagaça...

Este post tem 19 comentários

  1. toddy

    muito bom o texto john! kra, mas vc deu spoilers do filme! ainda q amanha ñ vou lembrar de porra nenhuma de hoje, pois antes de vim pra ksa, tomei tres caipirinhas do léo, e ñ sei nem como cheguei em ksa! mas assistirei o filme ( na locadora do falecido ultra) na tv a cabo quando chegar! valeu

      1. toddy

        normal, vc ñ entender, nem eu entendi q porra eu escrevi! eu to bebado cacete! valeu

  2. Andrei

    Que merda de texto. Pra quem acompanha de fato o trabalho do tarantino sabe que Django é um dos piores filmes do cara. Os dialógos sao péssimos, a montagem do filme tbm nao é das melhores, além de ser um filme que so ratifica um discurso racista e colonial com uma jornada infantil de um negro que é desacorrentado por uma alemão ( viram algum simbolimso nisso?) treinado pelo mesmo e de repente vira o maior pistoleiro da história. Nem de longe esse fime se apresenta como um spaghetti de qualidade, vide django clássico com Franco Nero. Há desafio proposto no clássico, nessa versão do tarantino, há sangue sem sentido. Nenhum negro escaparia de candyland após matar seu senhor e metade de um exército e ainda pendurado para castração, seria libertado para ir trabalhar em uma mina. Estamos falando do condado de mississipi e nao de uma vilinha de nova orleans. Um kill bill se explica tranquilamente mas um django nem se quer convence. Apenas ultraviolence e nada mais.

    1. Andrei, é sério que vc está avaliando o filme do Tarantino por questões de verossimilhança externa? Cara, nenhum filme dele é bom nesse sentido. Aliás, mas é essa a graça do diretor/roteirista/ator…

      1. Andrei

        É disso que eu estou falando sabe, na arte em geral, qndo se chega num certo patamar, vc nao precisa mais ser genial, basta ser mediano e por vc ser um icone, todos batem palmas e a crítica elogia. Não tou aki pra detonar a obra do Tarantino e mto menos pra desmerecer Django, mas nao tem como nao notar a queda de qualidade.Enfim, scorcese é um excelente diretor mas fez filmes ruins, gangues de nova york por exemplo é no minimo massante e só. Tarantino nao corre esse risco? Ha gente, pfv, django nao é legal, vamos parar com isso, o filme é ruim sim, nao é so pq se trata de um tarantino que vamos fazer elogios neh, o cara é bom, mas tem o direito de errar tbm, Ele mesmo fez comentários sobre django, afirmando que é o trabalho mai “arriscado” que ele ja fez. E como ator, tarantino é um ótimo diretor. ( tem que ficar atrás das cameras mesmo) rsrsrsr…

        1. Don Vittor

          Não vi o filme ainda, mas pretendo vê-lo para saber quem está com a razão. Todavia se a crítica for em razão a falta de realismo, creio que apenas Cães de Aluguel tenha se safado.

          1. Andrei

            E qual o problema mesmo com Jackie brown e Pulp Fiction?? Seus roreitos sao ótimos, o realismo nunca será uma premissa do cinema hollywoodiano mas convenhamos, Tarantino fazendo filme com piadinha tosca sobre ku klux klan e dancinha com cavalo com um fundo meio ” e o vento levou + entrevista com vampiro” ficou meio tenso. mas tudo bem neh, é tarantino, o cara é icone, pode fazer oq quiser. rsrsrsr

          2. João Luiz Viegas

            A verdade é que Tarantino não levou esse filme tão a serio quanto seus espectadores e fãs rs.

          3. Don Vittor

            Só vendo o filme. Em breve darei a minha opinião rs

          4. Dr. Housyemberg Amorim

            O problema com Pulp fiction é que ele é um ótimo filme de ação, mas não segue em momento algum as premissas da literatura Pulp das primeiras décadas só séc. XX. Mesmo assim, o vc gostou do filme, né? Talvez seja porque é Tarantino, mas o ícone que pode fazer o que quiser, mas desde que vc goste…

        2. Jonathan zzz

          O Tarantino atuando é uma merda mesmo, mas nao acho que o Django ser ruim ou fraco seja uma coisa inquestionável não, eu mesmo achei o filme foda, e sei que não é um flme perfeito, mas um filme que vai crescendo ao longo da projeção, no início eu tava achado quase o mesmo que você e fui mudando essa impressão ao longo do filme.

    2. Meu caro Andrei, acho que teriamos de parar no seu comentario “nenhum negro escaparia depois de matar metade de um exercito” . Na verdade, nenhum negro, nem branco, nem qualuer pessoa pertencente a este planeta, conseguiria, com 2 pistolas, matar metade de um exercito. Por isso que o nome do negócio se chama filme, ficção, mentira, exagero, essas coisas…

      E quanto ao alemão acho que ideia era essa meu caro. Imagina voce americano, sentadinho la no cinema, na bastasse o preto metendo bala em todo mundo, vem o ALEMAO e começa a meter bala nos brancos tambem.
      Alemanha foi aquele lugar que teve o nazismo né? Dizem que mataram muitos judeus la, dizem tambem que tem muitos judeus prosperos na america, com senso de humor nada amigavel para piadas que envolvam sua origem.

      1. andrei

        Ai ai… Tá, ta, Tarantino é o fodão e todo mundo agora paga prau pro cara. Uma pena neh, A zona de conforto chegou e quem sabe ele pode fazer um filme sobre cavalos como fez o Spielberg outro dia. kkkkk…

    3. Victor Figueira Poletto

      A merda começou no seu comentário.

  3. Frederico Lenz

    O próprio Tarantino reconhece que é um péssimo ator, o que acontece com o personagem dele no filme deixa isso bem claro!

    Django Livre é um filme fantástico, vemos nele um Quentin amadurecido, preocupado em dar um propósito maior ao que produz, em usar seu talento para nos fazer questionar o próprio comportamento humano. E o melhor de tudo, faz isso usando o mais puro entretenimento.

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