Guerra Civil (Marvel): a relação do herói com a autoridade policial e com o governo vigente

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As histórias em quadrinhos, enquanto meios de comunicação de massa, servem como ambiente para o desenvolvimento do mito do herói  na contemporaneidade. Elas atualizam a esfera mítica, contextualizando o herói e trazendo à tona questões pertinentes ao espírito do tempo atual. A produção simbólica resultante dessas interações  funciona  como  objeto  de  investigação  tanto  das  práticas comunicacionais da cultura de massa quanto de sua influência  na  construção  de  um imaginário.

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Assim, pensar as histórias  em  quadrinhos  e  as  dinâmicas socioculturais envolvidas em sua  fruição significa também  entender a forma como os discursos presentes no meio retratam uma espécie de “espírito do tempo” do lugar em que  foram  concebidos.  Para  pensadores  como  Howard Becker,  esses  “relatos”  sobre  a conjuntura  sociocultural  seriam  formas  de  representar  a  sociedade  e  perpassariam  as diversas  esferas  da  experiência  humana,  sejam  elas  singulares,  coletivas,  de  ordem política,  econômica,  social,  artística  ou  cultural.  Por isso,  esta  abordagem  procura investigar  as  “ideias,  significados  e  valores  socialmente  compartilhados”  presentes nesses produtos culturais.

Neste contexto, os quadrinhos norte-americanos de super-heróis são um campo fértil para averiguações sobre possíveis novos rumos da mitologia dos heróis e seu papel social no século XXI.  Dentre a  variedade  de  temas  abordados  anualmente  nos  quadrinhos estadunidenses,  salta  à  vista  a  preocupação  com  o  herói  e  seu  papel  de autoridade policial nas sociedades retratadas. Mesmo se tratando de uma obra de ficção, questões como Estado de Direito, legitimidade do herói, representação e vigilantismo permeiam o universo simbólico dos quadrinhos e desembocam na ideia do herói como representante do Estado e/ou governo vigente – uma vez que, de uma forma ou de outra, estes representariam o povo, o qual o herói deve servir e proteger.

Fazendo jus ao nome, “Guerra Civil” mostra a cisão do grupo de super-heróis do universo ficcional da Marvel por causa de uma lei dos Estados Unidos ordenando o registro de super-heróis. Ela os tornaria subordinados ao governo e sujeitos à  fiscalização. O pano de fundo desta  lei  foi  uma  tragédia  envolvendo  um confronto entre jovens heróis oportunistas e um supervilão, o qual resultou na morte de milhares de crianças na explosão de uma escola.

O fato do evento se chamar Guerra Civil não é mera coincidência. Essa é uma alusão à  Guerra  Civil  Norte-Americana  (1861-1865),  cujo  mote  era  a  escravidão e dividiu o país entre a União ou Federalistas, aqueles que efetivamente compunham a república, e os Confederados – estados que se emanciparam com a iminente queda da escravatura nos Estados Unidos. Dentre as figuras históricas importantes neste período estava Abraham Lincoln, recém-empossado  presidente,  e  até  hoje  tido  como  símbolo dos  “ideais  mais  puros  da  sociedade  americana”.

Por outro lado, os acontecimentos do dia 11 de setembro de 2001 e as guerras do Afeganistão e do Iraque também desempenharam um papel fundamental na construção dessa  narrativa.  O  cenário  de  catástrofe  e  as  subsequentes  medidas  de  proteção  que põem  em  risco  liberdades  individuais  estão  inseridos  implícita  e  explicitamente  em “Guerra  Civil”.  No  “mundo  real”,  além  dos  próprios  conflitos  bélicos,  a  chamada “guerra ao terror”, trouxe a sensação de insegurança e o cerceamento de direitos, como o de ir e vir, ameaçado pelas regulamentações sobre o serviço aéreo.

É interessante ver, no universo dos quadrinhos, a participação da opinião pública e da  mídia  na cobertura do conflito e a pronta resposta do governo através da  lei de registro  de  super-humanos.  Rotulados como despreparados  e  perigosos  por  conta  de seus poderes sobre-humanos, os heróis viram uma ameaça à segurança pública da noite para o dia. Como muitos se recusam a aderir a este registro, temendo por sua própria segurança e acreditando que isso seria uma forma de cercear suas liberdades e direitos individuais, os super-heróis, vistos  aqui  como  uma  classe,  se  dividem.  O lado  pró-registro  com  o  Homem  de  Ferro  e  o  lado  contrário  liderado  pelo  Capitão  América. Embora seja  um  símbolo  estadunidense,  o  personagem  Capitão  América  contraria  o governo se dizendo fiel aos “valores sagrados” dos fundadores da nação.

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A  partir  da  explosão  na  escola,  que  ficou  conhecida  como  “Incidente  de Stamford”, cidade do estado de Connecticut, surgiu um debate sobre a legitimidade dos super-heróis no papel de autoridades e da necessidade de um registro e treinamento para os  mesmos.  A  discussão  vira  um  projeto  de  lei  e  com  isso  a  comunidade  dos  super-heróis se divide. De um lado o Capitão América está contra a lei de registro de super-humanos e do  outro  o  Homem  de  Ferro,  braço  direito  do  governo  que  se  torna  um “caçador de heróis”.

Numa cena emblemática, o Capitão América discute com a diretora da agência governamental  chamada S.H.I.E.L.D. (uma  espécie de C.I.A., especializada em  casos sobre-humanos). A diretora, chamada Maria Hill, afirma que o registro é a vontade do povo americano e o Capitão América, como herói que representa esse povo, deveria ser a favor da nova lei. Ele, por outro lado, se defende dizendo que está a favor do povo americano,  mas  isso  não  significa  o  mesmo  que  ser  um  empregado  do  governo. Segundo ele, devido aos poderes que eles possuem, ficar a serviço de um governo seria muito perigoso, uma vez que a administração poderia simplesmente utilizar essa força contra inimigos políticos.

Esse questionamento  levanta  duas  questões  essenciais,  a  primeira  é  o posicionamento do Capitão América com relação ao governo. Ele  foi gerado por um projeto governamental para combater na Segunda Guerra contra alemães,  japoneses e italianos.  Contudo,  sua  versão  do  século  XXI  se  recusa  a  assumir  a  postura  de combatente  de  inimigos  definidos  pelo  governo.  Esse dado  marca  uma  mudança  de paradigma e de contexto histórico, uma vez que o governo da década de 1940 possuía uma aprovação extremamente positiva11 e era inegável que a ação do Eixo deveria ser combatida.  Por sua  vez,  em  2006,  no  ápice  da  administração  Bush,  as  guerras  do Afeganistão e do Iraque se provaram  empreitadas desastrosas e, segundo a  mídia, de motivações torpes como o controle de regiões petrolíferas no Oriente Médio.

Esses fatores indicam  a  passagem  de  um  posicionamento  essencialmente ideológico  para  uma  conjuntura  na  qual  a  fragmentação  é  a  regra,  característica  do pensamento contemporâneo que advoga o fim das grandes ideologias e a perda de uma noção concreta de representação. Em um mundo, a priori, despolarizado, todos possuem o potencial de agir como “mocinhos” e “vilões” a qualquer momento. A pergunta a ser feita por este  estudo  é  a  seguinte:  os  heróis  também  podem  agir  como  “vilões”?  Ou melhor dizendo,  podem  agir  contra  a  sociedade  civil  e/ou  opinião  pública  alegando estarem preocupados com o “bem maior” ou algo acima da capacidade de compreensão e da suposta volatilidade da mesma? Nesse sentido, ao se outorgar esse poder, os heróis perderiam sua “aura heroica”?

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Do outro lado do conflito está o Homem de Ferro. É possível observar como o massacre  incomoda  o  ex-negociador  de  armas  e  agora  pacifista.  Ele vê no  ato  de registro um direito do povo estando acima de quaisquer liberdades individuais. Para ele, a sensação de segurança (e, por conseguinte, a confiança da população nos heróis) deve ser preservada a qualquer custo. Seguindo seu raciocínio, sem o apoio da população os heróis perderiam sua representatividade, deixando de ser quem são. Um posicionamento diametralmente oposto ao do Capitão América.

Um fator de suma importância e que diferencia os heróis mitológicos dos heróis de quadrinhos é sua ação como autoridade policial na narrativa – provavelmente por ainda não haver de forma efetiva a figura de autoridade que cuida da ordem civil e apenas a  figura  de  autoridade  que  cuida  da  soberania  da  Cidade-Estado,  o  exército (mesmo que contratado). Além da  luta por um  “propósito maior”, os heróis  nas HQs  agem  efetivamente  como  policiais  mascarados  e  superpoderosos,  tal  qual  justiceiros e/ou  vigilantes.  Assim  a  questão  básica  de  que  trata  “Guerra  Civil”  já  havia  sido levantada por Platão em “A República” e se resume na famosa frase “Sed quis custodiet ipsos  custodes?”.  Do latim,  “quem  guarda  os  guardiões?”  ou  ainda  “quem  vigia  o vigilante?”. Embora não haja na República a citação em sua forma literal – atribuída ao poeta romano Juvenal – os diálogos de Sócrates reproduzidos por Platão ao longo do livro 2 sobre a confecção do guardião ideal para proteger a sociedade platônica utópica levam-no justamente a este questionamento.

A saga  termina  com  a  rendição  do  Capitão  América.  Quando seu lado  estava prestes a ganhar a luta, o herói tem um insight e percebe que os dois lados perderam o foco e estão apenas lutando, esquecendo-se completamente dos propósitos que deveriam estar  por trás  do  conflito18.  Porém,  seu  último  ato ao  se  deixar  ser  preso  é retirar  sua máscara e anunciar que aquele que estava sendo encarcerado era Steve Rogers e não o Capitão América, o símbolo, não à toa conhecido também pela alcunha de Sentinela da Liberdade. Dessa forma, sua rendição não significaria o fim da liberdade e de outros ideais, mas de alguma forma o fim de uma ideia utópica de liberdade e desses outros ideais.

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Este texto é uma versão resumida do artigo acadêmico publicado na revista Comunicação Midiática

Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

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