Iluminamos: Dogma

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Algumas pessoas talvez não lembrem, mas não foi em Diabo da Guarda (arco de histórias com o Demolidor para o selo Marvel Knights, ilustrada por Joe Quesada) a primeira vez que o roteirista e diretor de cinema – e católico – Kevin Smith tratou de temas religiosos.

Metraton, a Voz de Deus. Na imaginação de Kevin Smith, Deus seria uma espécie de Raio negro, dos Inumanos, cujas palavras não podem ser suportadas por ouvidos mortais. Por isso, ele se comunica através de um anjo, interpretado por Alan Rickman, que depois se tornaria famoso como o professor Severo Snape da série cinematográfica de Harry Potter.
Metraton, a Voz de Deus. Na imaginação de Kevin Smith, Deus seria uma espécie de Raio Negro, dos Inumanos, cujas palavras não podem ser suportadas por ouvidos mortais. Por isso, ele se comunica através de um anjo, interpretado por Alan Rickman, que depois se tornaria famoso como o professor Severo Snape da série cinematográfica de Harry Potter. Ele foi convidado para o papel quando descobriram que era fã de Procura-se Amy e, antes de aceitar o papel, exigiu saber se eles se manteriam fiel ao roteiro. Smith, garantiu, até porque ele deixou claro que “a voz de Deus tem que ter sotaque britânico!” Reparem no detalhe no pescoço: o capuz representa as auréolas dos anjos.

Em 1999, ele lançou Dogma, filme que começa com um pedido de desculpas antecipadas – rogando às pessoas para não machucarem ninguém por causa da história -, lembrando que Deus tem senso de humor. Tanto que criou o ornitorrinco.

"O projeto nasceu das perguntas que eu me fazia em relação a fé. Mas o filme não tenta responder a nenhuma das questões. Ele quer apenas fazer o público rir." -Kevin Smith
“O projeto nasceu das perguntas que eu me fazia em relação à fé. Mas o filme não tenta responder a nenhuma das questões. Ele quer apenas fazer o público rir.”  Kevin Smith

A introdução é válida, já que a obra provocou as esperadas reações irracionais instigadas por entidades ligadas à Igreja Católica, principalmente nos Estados Unidos e aqui, no Brasil, onde o filme foi relegado a sessões nos circuitos de arte de algumas cidades do país, já que Severiano Ribeiro, Cinemark e UCI, pressionados, se recusaram a exibi-lo em suas salas.

O Jesus "Irmão". Embora seja o quarto filme produzido pelo cineasta dentro do seu universo cinematográfico particular (os outros são O Balconista, Barrados no Shopping, Procura-se Amy, o Besteirol) Conta-Ataca e O Balconista 2), foi o primeiro roteiro finalizado por Smith, que resolveu produzi-lo apenas quando tivesse condições para fazê-lo exatamente como tinha imaginado.
O Jesus “Irmão”, que hoje está na loja de quadrinhos de propriedade do diretor em New Jersey. Embora seja o quarto filme produzido pelo cineasta dentro do seu universo cinematográfico particular, o View Askewniverse (os outros são O Balconista, Barrados no Shopping, Procura-se Amy, O Império (do Besteirol) Contra-Ataca e O Balconista 2), foi o primeiro roteiro finalizado por ele – e deveria ter sido o segundo filme da série, de acordo com os créditos finais de O Balconista – mas resolveu produzi-lo apenas quando tivesse condições para fazê-lo exatamente como tinha imaginado. Robert Rodriguez foi convidado para dirigir, mas terminou convencendo Smith de que a história era pessoal demais pra ser conduzida por outra pessoa.

Na história, que pode ser considerada como uma brincadeira com o fim dos tempos previsto por Nostradamus para a passagem de 1999-2000, dois anjos renegados, Loki e Bartleby, recebem um recorte de jornal dando conta que uma igreja em New Jersey prometia a remissão de todos os pecados para quem passar pelas suas portas no dia do centenário do templo. Banidos do Paraíso, ali eles descobrem uma forma de poderem retornar para lá.

Loki (Matt Damon) foi durante séculos o Anjo da Morte, responsável por coisas como o dilúvio, Sodoma e Gomorra e o massacre dos primogênitos do Egito. Convencido por Bartleby, ele, bêbado, resolveu questionar Deus sobre seus atos e acabou sendo banido, junto com o amigo, para Winsconsin, onde se dedica principalmente a arrefecer a fé de clérigos e tentar controlar o seu instinto assassino.
Loki (Matt Damon) foi durante séculos o Anjo da Morte, responsável por coisas como o dilúvio, Sodoma e Gomorra e o massacre dos primogênitos do Egito. Convencido por Bartleby, ele, bêbado, questionou Deus sobre seus atos e acabou sendo banido, junto com o amigo, para Winsconsin, onde se dedicou a assistir desenhos animados, arrefecer a fé de clérigos e tentar controlar o seu instinto assassino. O papel seria de Jason Lee, que teve que declinar por se encontrar extremamente ocupado na época. Como consolo, Ganhou um papel menor, como o demônio Azrael.

O problema é que toda  a existência é baseada no conceito da infalibilidade de Deus. Se os dois anjos exilados conseguirem retornar ao Paraíso, este conceito cairá por terra e, muito provavelmente, toda a realidade será apagada. Metraton, a Voz de Deus, procura então a última descendente viva de Jesus Cristo para que ela impeça a dupla de conseguir seu intento.

Bethany (Linda Fiorentino) é uma divorciada estéril que trabalha em uma clínica de abortos. Seu personagem foi um dos principais alvos dos ativistas católicos.
Bethany (Linda Fiorentino) é uma divorciada estéril que trabalha em uma clínica de abortos e perdeu sua fé. Seu personagem foi um dos principais alvos dos ativistas católicos. O papel seria de Alanis Morissette, que não aceitou por estar envolvida em uma turnê. Joey Lauren Adams, de Procura-se Amy, também foi cogitada para o papel. Linda trouxe um ar mais maduro para a personagem, que enxergou, como uma versão adulta de Dorothy (de O Mágico de Oz), uma pessoa que busca não só o perdão de Deus, como perdoá-Lo na mesma medida.

No caminho, ela contará com a ajuda de dois profetas (os mais que improváveis Jay e Silent Bob), do 13º (e esquecido) apóstolo e da Inspiração.

Silent Bob (Kevin Smith), Rufus (Chris Rock) e Jay (Jason Mewes). Além de colocar dois pequenos traficantes como profetas, foi apresentado Rufus, o apóstolo que teria sido "esquecido" pelos evangelistas por ser negro (este também seria o motivo pelo qual criou-se o mito segundo o qual o número 13 seria de mau agouro). Aliás, segundo o mesmo, Jesus também seria de cor, mas o passar do anos - e as sucessivas revisões dos evangelhos - acabou deixando ele cada vez mais branco. Ele se engaja na missão de Bethany em troca de apoio para sua campanha para uma nova revisão das escrituras, que expusesse a verdade.
Silent Bob (Kevin Smith), Rufus (Chris Rock) e Jay (Jason Mewes). Além de colocar dois pequenos traficantes como profetas, foi apresentado Rufus, o apóstolo que teria sido “esquecido” pelos evangelistas por ser negro (este também seria o motivo pelo qual criou-se o mito segundo o qual o número 13 seria de mau agouro). Aliás, segundo o mesmo, Jesus também seria de cor, mas o passar do anos – e as sucessivas revisões dos evangelhos – acabou deixando ele cada vez mais branco. Ele se engaja na missão em troca de apoio para sua campanha: uma nova revisão das escrituras, para que as mesmas contem a verdade.

Enquanto Loki e Bartleby viajam para New Jersey (e o primeiro aproveita pra dar vazão ao seu lado violento), Bethany é informada que Deus está desaparecido desde a última vez que tinha vindo à terra… praticar esportes (passatempo mensal Dele). Ela e seus amigos acabam confrontando Azrael, um demônio que foi a primeira encarnação da Inspiração. Ele, às escondidas de Lúcifer, tenta destruir toda a existência apenas para poder se ver livre do Inferno.

Bartleby (Ben Affleck) foi o responsável pelo exílio de ambos, ao convencer Loki, durante uma bebedeira, a questionar as ordens de Deus. Ele agiu motivado por uma prosimidade maior com a raça humana, que vai arrefecendo durante os séculos de convivência conosco.
Bartleby (Ben Affleck) foi o responsável pelo exílio de ambos, ao convencer Loki, durante uma bebedeira, a questionar as ordens de Deus. Ele agiu motivado por uma proximidade maior com a raça humana, que vai arrefecendo durante os séculos de convivência conosco. Com o dom do convencimento, fica extremamente impaciente quando seus argumentos se mostram insuficientes.

Há um sem número de referências na obra, principalmente nos diálogos. São citadas frases ou personagens de filmes ou séries de TV como Indiana Jones e a Última Cruzada, Karatê Kid, O Incrível Hulk, Grito de Horror, O Homem de Seis Milhões de Dólares e, claro, Star Wars, que sempre é citado em qualquer filme de Kevin Smith.

Tive o cuidado de pesquisar reações da época em que o filme foi lançado e, mais uma vez, me decepcionei com a estreiteza da visão das pessoas que são  manipuladas por outros que usam a religião como instrumento de influência sem mérito. São críticas sem fundamento, baseadas em informações equivocadas (são citadas inclusive passagens e diálogos que não existem no filme para inflamar a ojeriza das pessoas) e extremamente maliciosas (a maioria não toca na questão da cor de pele de Jesus para não ser politicamente incorreto). Mesmo brincadeiras bobas como a interpretação de Smith para o “sexo dos anjos” são apontadas como uma grande blasfêmia.

Azrael (Jason Lee) já foi a Inspiração, mas perdeu o cargo durante o expurgo celeste. Não que ele tenha tomado o partido de Lúcifer. Ele foi condenado justamente por ter se omitido covardemente, aguardando escondido para se unir ao vencedor da disputa.
Azrael (Jason Lee) já foi a Inspiração, mas perdeu o cargo durante o expurgo celeste. Não que ele tenha tomado o partido de Lúcifer. Ele foi condenado justamente por ter se omitido covardemente, aguardando escondido para se unir ao vencedor da disputa. Antes de Jason Lee ganhar o papel, foram cogitados os nomes de Adam Sandler e Bill Murray.

Engraçado é que, quando o filme foi lançado, apenas os católicos se doeram. Protestantes e judeus, em sua maioria, fizeram de conta que aquilo não era com eles. Da mesma forma que os católicos pouco se importam quando filmes criticam a visão religiosa de evangélicos ou israelitas.

Deus (Alanis Morissette). O papel foi pensado para a chatinha Holly Hunter, que não aceitou o convite. Depois foi oferecido para Emma Thompson, que teve que declinar por conta de uma gravidez.
Deus (Alanis Morissette). O papel foi pensado para a chatinha Holly Hunter, que não aceitou o convite (mesmo assim foi mantida uma pequena referência no roteiro a O Piano, filme estrelado por ela). Depois foi oferecido para Emma Thompson, que teve que declinar por conta de uma gravidez.

Provavelmente, nada os aborreceu mais do que a figura de Deus. Em primeiro lugar, acharam chocante a forma como Ele é descrito: uma entidade ranzinza, autoritária, dona da razão e que não hesita em ordenar massacres para fazer valer o seu ponto de vista. A raiva aumentou quando Deus surge na tela no corpo de Alanis Morrisette. Não gostaram Dele ser uma mulher. Não gostaram de ser interpretado por uma “roqueira”. Não gostaram de vê-Lo brincando num jardim como uma criança. E, claro, detestaram também o figurino.

DEUS2

Kevin Smith chegou a se infiltrar em grupos católicos que protestavam contra a exibição do filme. Em uma das vezes, chegou a ser reconhecido e entrevistado por uma repórter, mas manteve a farsa: disse que era sempre “confundido” com o cineasta e que “lamentava” que ele tivesse feito aquele filme, pois até “tinha gostado” do primeiro filme dele. Smith declarou: “esse movimento tem muito mais a ver com um grupo que se autodenomina de católicos, a liga católica ou ao grupo americano da família que fazem parte de uma organização ainda maior que é a Organização e Associação da Família Tradicional e Propriedade – o que é muito esquisito, pois me faz lembrar de um grupo de pessoas brancas que querem que o mundo fique do jeito que era há 34 anos. Eu não estou dizendo que aquela época não era boa, mas não somos mais inocentes daquele jeito e acho que não seremos daquela maneira de novo. Se você considerar que não somos inocentes agora.”

Cardeal Glick (George Carlin). "A sua visão do mundo é que inspirou o filme'', diz Smith, "e eu achei importante envolver Carlin porque ele é um cara que ridiculariza as religiões. Ele mergulhou na idéia de viver um cardeal. Ele sabia que não era somente uma piada e quis mostrar a essência de Glick - que é um vendedor, mas alguém totalmente sincero’’.
Cardeal Glick (George Carlin).  “A sua visão do mundo é que inspirou o filme e eu achei importante envolver Carlin porque ele é um cara que ridiculariza as religiões. Ele mergulhou na ideia de viver um cardeal. Ele sabia que não era somente uma piada e quis mostrar a essência de Glick – que é um vendedor, mas alguém totalmente sincero’’ – Kevin Smith –

Acho que o espírito é mesmo esse. São estas pessoas que se rendem a uma fé cega sem embasamento ou questionamento e se entregam como cordeiros a uma condução contra algo que nem sequer assistiram, alvo principal do roteiro. Kevin não quer insultar Deus, Jesus, Maria ou mesmo a Igreja Católica. Ele critica as pessoas que se deixam ser enganadas à toa, que dão às costas ao diálogo para seguir uma autoridade que não vem de lugar algum e que não se apóia em nada. Ele critica aqueles que vão à missa por obrigação ou que acreditam ou deixam de acreditar em algo mediante uma boa retórica. Ou que a religião possa ser uma questão de marketing, que visa angariar adeptos a qualquer custo.

A Inspiração (Salma Hayek). Ela resolveu se testar como humana, mas fracassou. Segundo ela, é frustrante ter milhões de ideias para os outros e nenhuma para si. Salma Hayek recebeu uma indicação para o Framboesa de Ouro por seu papel neste filme (uma injustiça, diga-se de passagem: só essa cena de poli dance já mereceria um Oscar!). Quando o filme foi lançado em dvd, ela pediu que sua imagem fosse retirada dos cartazes promocionais.
A Inspiração (Salma Hayek). Resolveu se testar como humana, mas fracassou. Segundo ela, é frustrante ter milhões de ideias para os outros e nenhuma para si (nem receber crédito pelas que inspirou). É encontrada em um bar de striptease, “inspirando” a galera. Salma Hayek recebeu uma indicação para o Framboesa de Ouro por seu papel neste filme (uma injustiça, diga-se de passagem: só essa cena de poli dance já mereceria um Oscar!). Quando o filme foi lançado em dvd, ela pediu que sua imagem fosse retirada dos cartazes promocionais.

Dogma, na minha opinião, só ofende aqueles que são pagos para se sentirem ofendidos, que são incitados a se sentirem ofendidos e aqueles que não assistiram ou não compreenderam o filme.

Diretor: Kevin Smith Com Ben Affleck, Matt Damon, Linda Fiorentino, George Carlin, Salma Hayek, Jason Lee, Jason Mewes, Kevin Smith. Produtor: Scott Mosier Roteiro: Kevin Smith Fotografia: Robert Yeoman Trilha Sonora: Howard Shore Duração: 135 min. Ano: 1999 País: EUA Estúdio: Lionsgate Films
Diretor: Kevin Smith Elenco:  Ben Affleck, Matt Damon, Linda Fiorentino, George Carlin, Salma Hayek, Jason Lee, Jason Mewes, Kevin Smith. Produtor: Scott Mosier Roteiro: Kevin Smith Fotografia: Robert Yeoman
Trilha Sonora: Howard Shore  EUA, 1999, 135 minutos.                        Lions Gate Films

 

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 12 comentários

  1. Um dos meus filmes favoritos. Vi ele quando ainda era um gurizinho e fiquei me perguntando por vários dias sobre varias questões que o filme aborda.

    1. JJota

      Na primeira vez que assisti, passei dias rindo lembrando do Monstro de Merda. E, à noite, refletia sobre a atuação da Salma Hayek.

      1. Acho que esse filme e Preacher fizeram um estrago e tanto na minha cabeça BWAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA Até hoje eu paro por um tempo e fico pensando nesses assuntos

        1. JJota

          Eu sempre penso na Salma dançando em trajes ínfimos!

          E eu acho foda a proposta do Kevin Smith: ele fez o filme justamente pra insultar os babacas que ele sabia iriam ficar cheios de nove-horas com isso.

          1. Pastor Luc Luc

            Kevin Smith é foda, gostaria que ele voltasse a fazer filmes ou escrever HQs

          2. JJota

            Desde que não seja Menina dos Olhos…

  2. toddy

    eu não lembro de ter visto esse filme jota, mas agora fiquei com vontade de assistir. Ainda com a Selma Hayek de calcinha, ai sim! ótimo post

    1. JJota

      Eu não direi que tem ele completo no vctb.

      E a cena da Salma dançando é maravilhosa!!!!!!!!!

  3. Renver

    Robert Rodriguez foi convidado para dirigir, mas terminou convencendo Smith de que a história era pessoal demais pra ser conduzida por outra pessoa.

    Em outras palavras “tirou o corpo fora”

    1. JJota

      Acho que ele deve ter pensado em uma série de pequenas alterações que gostaria de fazer e, provavelmente, o Kevin não aceitaria. Aí, preferiu preservar a amizade.

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