Iluminamos: O Abutre

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A partir de uma premissa original – um ambicioso ladrão de tampas de bueiro que fareja uma oportunidade de carreira na filmagem de crimes e acidentes, é desenvolvido um brilhante roteiro, que nos apresenta à sordidez da noite de Los Angeles, em que a violência é um meio de vida para cinegrafistas e para canais de tevê que a transformam em espetáculo em nome da audiência.

Jake Gyllenhaal, em uma interpretação radical, faz do ladrão Louis Bloom um tipo ordinário, um solitário de aparência estranha, um outsider, que lembra um típico personagem de Steve Buscemi, no começo. A fragilidade que inicialmente demonstra parece capaz de angariar alguma simpatia de nossa parte, sentimento que nos é arrancado do peito durante a projeção, quando o conhecemos melhor e descobrimos do que ele é capaz. Louis é autodidata, e, através da internet, toma axiomas da Administração e dos Negócios para si como auto-ajuda para escapar de sua miséria e conquistar o sucesso que acredita merecer. Empreendedor, obstinado e sem escrúpulos, desenvolve um plano de negócios que não é levado a sério por ninguém até ser tarde demais.

A crítica ao capitalismo selvagem veiculada no filme, no qual pessoas são apenas ferramentas cujas necessidades podem ser manipuladas e embotadas por meio de perigosas reduções de princípios científicos da Administração, é similar em conteúdo ao discurso contido nos filmes Sem Dor Sem Ganho e Cosmópolis, só para citar algumas produções compatíveis na experimentação da narrativa cinematográfica.

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A devoção pela imagem, vista hoje na obssessão dos selfies e produção quase ininterrupta de vídeos de celulares, é sintomática em nossa sociedade, e refletida na ausência de pudor e privacidade do nicho de mercado desbravado pelo personagem de Jake Gyllenhaal.

Tal ausência está presente na pauta do jornalístico dirigido pela personagem de Rene Russo, perfeita como uma decadente profissional televisiva no limite do desespero pela audiência, capaz de fechar os olhos para tudo que a desviaria de seu foco. Para ela, e poderia ser para sua emissora, e para qualquer outra emissora, violência explícita dá mais audiência, lógica que poderia ser do Cidade Alerta, do Aqui Agora e de tantos outros que temos por aí.

A cartilha dos filmes de ação, espetáculos violentos e bem-humorados nos anos 80 e 90, vem sendo reescrita nos anos 2000 com produções dramaturgicamente mais relevantes e plasticamente mais intensas e coreografadas, como a trilogia Bourne, os novos 007 e os filmes de Liam Neeson, que possuem um quê da Escola dos anos 70, que tinha Dirty Harry e Charles Bronson como principais expoentes. O Abutre insere sequências memoráveis em sua trama, de tiroteios a perseguições de carro, com o costumeiro realismo dessa nova cartilha e uma crueldade ainda mais pungente.

Além de impecável e vigoroso, O Abutre possui o mérito de iniciar inúmeras discussões, sendo uma delas as possibilidades e responsabilidades da Era da Informação. Tudo está na internet. Endereços, histórico profissional, intimidades. O que fazemos com essas informações? A resposta parece estar em outra pergunta que o filme nos faz: A Ética ainda é capaz de controlar algum aspecto da vida em sociedade? Ou foi substituída por valores diversos que desprezam suas considerações?

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Por outro lado, Louis Bloom é um sociopata. Ele não está nem aí para as pessoas, não gosta delas. Porém, como um psicopata, ele passa a buscar a aprovação de algumas delas, elaborando um discurso falso e aparentemente correto, tendo por base lições de Negócios e mesmo de Inteligência Emocional. O resultado é tétrico. O nível de desconforto aumenta a cada minuto, e um certo suspense que parecia nos divertir se molda numa atmosfera pesada e desagradável em que somos confrontados pela verossimilhança da tela, com a possibilidade de testemunhar um ensaio sobre os terríveis resultados de uma experiência em andamento contínuo: a espécie humana, e tudo que ela é capaz.

É medo o que sentimos na espinha. O Abutre não é definido como um filme de terror, mas tudo o que acontece nele, tudo que reflete a vida real, que pode verdadeiramente estar acontecendo a cada noite em qualquer grande cidade, e a existência de alguém como Louis realmente nos assusta. Muito. São seus olhos. Grandes e famintos por algo que não conseguimos apreender. Sua postura curvada, sua pele cinzenta, seus cabelos ensebados e mal cortados. O modo como fala, cheio de si, desagradavelmente seguro de que tudo que está fazendo é correto, ou pior: fazendo o possível para acreditarmos nisso. Nunca ficamos com tanto medo de um personagem de ficção quanto agora. É a história de Louis, e da diretora do telejornal para o qual ele vende seus vídeos. E do ajudante dele. A tragédia ronda a vida de todos eles. Para alguns a tragédia é simplesmente moral, para outros, mortal. E é verdade que cada um deles sempre esteve à beira de cada um desses destinos. Como se estivessem traçados desde o começo.

O diretor Dan Gilroy entrega-nos um retrato do submundo como há muito não víamos, com uma crítica social afiada e um estudo psicológico profundo. Um thriller com diálogos que nos golpeiam pela verdade contida neles, com um terror tão real e torpe que nos deixa tontos e nauseados todo o tempo, esperando pelo pior, que sempre se concretiza.

Uma obra-prima que ressoa em nossas cabeças após a saída da sala, que nos força a falar sobre ela. Cinema em estado puro.

Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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