Iluminamos Obra Aberta: Coriolano – um tratado sobre política

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“Gostei do filme, mas o livro é infinitamente melhor”. Quantas vezes não ouvimos ou até proferimos este lugar comum tentando soar mais cultos, abalizados ou interessantes do que na verdade somos. No laboratório de editoração da faculdade de jornalismo da Uerj, local onde “me criei” enquanto crítico, essa é a primeira lição que aprendemos sobre o que NÃO fazer numa resenha cinematográfica. Sem cometer esse reducionismo que deixa pouco espaço para reflexão, uma análise, obviamente, pode (mas não necessariamente deve) levar em conta a “obra original” – o que, mais tarde, já como acadêmico, descobri ser um conceito em disputa. Não é apenas sua opinião pessoal que deve ditar, soberana, o valor da adaptação, é preciso mostrar “com quantos paus se faz uma canoa”, justificando suas afirmações, considerando as características dos meios, ponderando mensagens e questionamentos propostos pela obra etc etc etc.

Essa deveria ser a ideia central de uma crítica (e não mostrar como o crítico sabe muito mais do que o leitor). É importante ressaltar que, caso seja impossível fugir deste viés, deve-se fazê-lo com brio, garbo e elegância, por isso decidi criar mais esse espaço aqui no nosso Iluminerds. O Obra Aberta é um Iluminamos diferente, cuja única função é comparar adaptações (como se deve). Sem necessariamente se preocupar com um “original”, a ideia é pegar quaisquer versões a que tivemos acesso e tecer comparações (abalizadas, mas sem “academicismo”), explicar pontos de vista e falar tanto da narrativa, quanto da estética, de atores e personagens, de gráficos e possibilidades/dificuldades técnicas. Enfim, não se trata de “julgar” a fidelidade da adaptação, mas de tentar expressar todas as potencialidades de uma obra (seja um livro, filme, HQ, game, jogo de tabuleiro etc.).

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Aproveitando que no dia 26 de abril último celebrou-se os 449 anos de nascimento de William Shakespeare (pela data de batismo. Não se sabe ao certo a data do nascimento do cara), decidi iniciar essa seção com uma de minhas novas aquisições: o livro Coriolano. Não sei se todo mundo sabe, mas Shakespeare era dramaturgo e poeta, ou seja, ele escrevia, sobretudo, peças de teatro e poemas – esse seria seu texto no “original”. Logo, as compilações que vemos nas livrarias não são textos em prosa, mas “apenas” diálogos com alguma ambientação (são basicamente roteiros e não romances em si). Mesmo assim, não deixam de ser obras muito interessantes e prazerosas de ler.

Ambientado na Roma Antiga, Coriolano conta a história do general Caio Marcio, famoso por sua bravura em batalha – um campeão invicto – que, apesar de sua destreza com uma espada, não sabia como lidar com o povo, em suma, não sabia como fazer política.  Apontado pelos senadores e demais políticos da cidade como novo Cônsul, um cargo político justo em vista dos serviços prestados à Nação, ele acaba caindo em desgraça posteriormente.

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Conhecido pela arrogância com que tratava o povo, o qual realmente considerava volúvel, ignorante e irascível – uma ralé em todos os sentidos – Caio Márcio atraiu a atenção negativa de dois tribunos do povo (os representantes dos comuns no Senado). Eles viram o povo contra o cônsul recém-eleito – usando sua própria arrogância, diga-se de passagem – e fazendo com que ele fosse banido da cidade.

No exílio, Márcio procura a ajuda justamente de seu pior inimigo, Túlio Aufídio, líder militar dos Volscos, os quais ele acabara de derrotar na cidade de Corioles. É este evento que lhe dá a alcunha de Caio Márcio Coriolano. Se aliando a quem antes jurou matar, Coriolano marcha com Túlio contra Roma, sua até então amada pátria (lembrando que estamos falando do tempo das cidades-estado).

Acredita-se que a peça de Shakespeare tenha sido escrita entre 1605 e 1608. Ela seria baseada na biografia de Caio Marcio Coriolano escrita pelo historiador Plutarco (76 – 120 DC). Coriolano teria sido de fato um general romano da Antiguidade, embora historiadores contemporâneos acreditem que se trate mais de uma lenda ou pelo menos de um relato que mistura elementos históricos e ficcionais, tal qual os poemas épicos de Homero.

A peça traz diversos insights que são dignos da fama do escritor. Embora esse possa até ser considerado um texto “menor”, por não possuir o mesmo apelo de outros trabalhos tanto no campo da política como no da tragédia como são os três Henry VI, Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta, entre outros. Contudo, dois temas em particular merecem destaque. Em primeiro lugar, o que considero uma crítica aberta de Shakespeare aos demagogos, representados pelos tribunos Sicínio Veluto e Júnio Bruto, que buscam inflamar ou arrefecer o povo ao seu bel prazer, seguindo uma agenda própria. É possível ver como, por sua “fala mansa” e aparente subserviência, os dois conseguem manipular a população e eliminar um inimigo político.

Por sua vez, como não poderia deixar de ser, o que mais instiga o leitor é a concepção dos personagens e das tramas, não à toa diz-se que na dramaturgia tudo (ou quase tudo) vem de Shakespeare. No caso de Coriolano, a concepção do protagonista como um verdadeiro herói romano, cheio de bravura e virtude, com amor e devoção à pátria inegáveis contrastam com seu temperamento explosivo – perfeito para a guerra, mas menos adequado para a posição política que seus colegas lhe queriam outorgar –, orgulho e desprezo pelo povo, pelos comuns, nos quais via apenas os defeitos.

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É curiosa a forma como ele distancia sua visão idílica de Roma – para ele, um conjunto de ideais e valores sagrados – das pessoas que de fato vivem na cidade, o que faz dele sem dúvidas um tirano (mostrando que também os tribunos demagogos não estão de todo errados e não podem ser considerações “vilões” da história…e nem ele o “mocinho”). O único “porém” é que a posição de cônsul parece ser mais um desejo de seus amigos e familiares, um chamado de seus pares, uma nova missão que lhe era dada, do que sua própria vontade, preferindo ele continuar como soldado.

Já a produção cinematográfica desperta interesse à primeira vista por se tratar da estreia na direção do ator Ralph Fiennes, indicado ao Oscar duas vezes por O Paciente Inglês e A Lista de Schindler, conhecido internacionalmente como o Voldemort de Harry Potter e o novo M. da franquia 007. Como a maioria dos atores britânicos, ele possui uma formação shakespeareana (como é quase impossível não o ser ao se envolver com artes cênicas na terra d’O Bardo) e interpretou diversos papéis nos palcos do Reino Unido e dos EUA (inclusive na Broadway). Por esse motivo, as expectativas quanto a este longa eram altíssimas. Ainda mais tendo como referência o sucesso de seu colega irlandês Kenneth Branagh, também um ator shakespeareano transformado em diretor (tendo inclusive dirigido recentemente o primeiro Thor da Marvel).

Além de um diretor (e produtor) de renome, outro fator de destaque desta montagem de Coriolano é sua ambientação nos tempos modernos. No roteiro de John Logan (Aviador, Hugo Cabret e 007 – Skyfall), Roma e Volscia são como republiquetas do leste europeu, como as Ossétias do Sul e do Norte, ou as regiões em guerra dos Bálcãs. Esperava-se então outro Romeu + Julieta – a filmagem de 1996 de Baz Luhrmann com Leonardo DiCaprio e Claire Danes – os mesmo diálogos sagazes idealizados pelo autor apenas com uma roupagem mais atual e, por conseguinte, mais acessível. No elenco, Gerard Butler (300) interpreta Aufídio, a premiadíssima Vanessa Redgrave faz a mãe de Coriolano, Volúmnia, a belíssima Jessica Chastain (de A Árvore da Vida e A Hora Mais Escura) interpreta sua mulher, Vergília, e Brian Cox faz Menenio Agripa, melhor amigo de Coriolano e também um político.

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Apesar do grandioso trailer, o filme se mostra bem mais modesto e intimista, não um thriller de ação como prometido, mas um relato pseudodocumental com uma inspiração mais teatral do que propriamente cinematográfica. O ritmo lento com que transcorre a narrativa pode indicar um dos motivos pelo qual a produção obteve uma distribuição bastante esparsa e a pouca atenção dispensada ao longa. É um bom filme, mas, da mesma forma que o livro, não se destaca dentre as outras produções do gênero (das peças que li e assisti, Otelo ainda é minha favorita. Ah, Iago…).

Coriolano, textualmente, proporciona uma leitura agradável (e até bem rápida), com momentos divertidos e dramáticos na medida certa. Já o filme não corresponde às expectativas não por falta de fidelidade ao original, mas por excesso. As atuações são consistentes e até bastante comoventes, sobretudo a Volúmnia de Redgrave, a mãe dividida entre o amor ao filho e o dever com sua pátria, mas falta à película a excitação necessária para realmente conquistar o espectador de cinema. Pode se dizer que falta um pouco da fúria de Coriolano tão bem retratada no livro.

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No entanto, seu maior legado, em quaisquer das duas mídias, é fazer pensar sobre as relações entre um povo e seus governantes. Um debate que não deixa de ser atual, mostrando a força das reflexões propostas pelo Bardo hoje e sempre. A todo o momento durante a narrativa somos questionados se seria melhor um governante que adula seus eleitores/súditos, dando ao povo o que ele quer ouvir e não o que ele “precisa de verdade”, ou um governante mais ríspido que não se importe em agradar (pelo contrário, preferindo até suscitar o ódio), mas em fazer o que é necessário.

A escolha parece fácil, sobretudo no Brasil onde a política muitas vezes se torna um concurso de popularidades e ideologias na qual os políticos “se vendem” àquilo que lhe der mais votos (uma religião, uma determinada causa). Contudo, a pergunta permanece, “quem decide o que o povo precisa?”, “um governante pode ignorar os anseios e vontades da população e ainda assim os representar?”, “não seria isso tirania?”. Num país onde parte da classe média é extremamente conservadora, preconceituosa e saudosa do período ditatorial, esse flerte com os ideais tirânicos sempre se mostra bastante perigoso. Afinal, como Shakespeare bem mostra, por um acaso do destino, esse salvador/defensor pode se virar contra você.

Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

Este post tem 3 comentários

  1. Verssago_DeLarge

    Má oeeee, excelente crítica, excelente, dá 100 Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos pra ele!

  2. Fabricio Oliveira

    Legal, vou ver se vejo. Adoro adaptações do Shakespeare, principalmente quando eles ambientam no presente. Tinha uma adaptação do Hamlet com o Ethan Hawke, feita pra HBO, se não me engano, que é bem bacana também.

  3. D.D.A

    Assisti a um tempo e tenho uma opinião parecida.
    Esperava algo mais do filme.

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