Literatos: Biofobia – Santiago Nazarian

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Morei até os 28 anos em uma casa num condomínio cercado pelos fundos da Floresta da Tijuca, em Jacarepaguá. Nos finais de semana, durante o dia, havia muita gente nas ruas fazendo cooper, andando de skate, jogando futebol e exibindo mobiletes, motos e carros que ganhavam dos papais. Costumávamos também explorar a mata ao redor. Havia uma cachoeira perto, com um escorrega natural e um pequeno riacho. Era uma vida bucólica no coração de uma metrópole.

Apesar de estarmos no Rio de Janeiro, fazia frio no inverno e uma névoa costumava sair da floresta no início da madrugada para cobrir os topos dos postes e criar uma atmosfera onírica, fascinante e amedrontadora. Tinha sempre a impressão de que a mata vinha recuperar, à noite, aquilo que roubávamos dela durante o dia. E morria de medo (sempre fui medroso).

O auge dos filmes de ação e de terror aconteceu na década de 1980. Nos cinemas, você deveria escolher entre Bruce Willis, Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger, ou ainda Jason, Freddy e Mike. Geralmente escolhíamos a turma da porrada, mas noites frias e enevoadas impõem sua marca de medo. Nas férias de inverno ficávamos na frente da televisão da casa de algum amigo assistindo a todo e qualquer filme de terror que estivesse disponível nos incríveis sete canais da televisão aberta.

Na hora de voltar pra casa, sozinho, a neblina parecia me engolir e eu podia jurar que surgiriam monstros a qualquer momento. Todos aqueles monstros e assassinos dos filmes na verdade habitavam ali, atrás daquela cortina branca. Eu corria. Ouvia bem baixinho uma trilha sonora, efeitos sonoros, tudo escuro, embaçado, de repente, o silêncio produzindo um som medonho. Corria ainda mais rápido.

Cresci, mudei de endereço, casei, tive um filho e aquela sensação foi guardada em alguma gaveta, aos meus quatorze anos.

Abrir Biofobia, o novo livro do Santiago Nazarian, e ler as primeiras páginas foi como abrir essa gaveta. Cada parágrafo arrancando de dentro de mim aquela sensação de medo, o frio na barriga que sentia quando tinha de voltar pra casa, sozinho, no meio da madrugada, a rua me engolindo.

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A começar pela ambientação, uma casa no meio do mato; bucólico. Durante o dia, a luz, a mansidão do sol que brilha e aquece, café da manhã com cheiro e gosto de roça. À noite, a natureza parece querer tomar de volta aquilo que sugamos dela. De cara, portanto, o leitor entende que o autor criou o ambiente perfeito para que ele fique tenso, e goste disso. Contudo, Santiago não para por aí, ele apresenta um sujeito com nome, rosto, passado, manias, vícios, cheio de características, e ainda assim difícil de enxergar. Você consegue ver-lhe o rosto, mas não pode dizer quem é. Nem mesmo Andy – o protagonista – sabe dizer quem é.

No passado – o leitor descobre com o tempo –, isso jamais importou. Parece não importar muito, também, quando Andy chega à casa da mãe que cometeu suicídio para dividir a herança. A pretensa segurança do protagonista está presa à imagem falsa que construiu de si mesmo (um astro de rock, que agora é decadente). Ele parece ter colocado tudo o que importava dentro de uma gaveta, aos quatorze anos de idade.

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Ao reencontrar os restos da alma da mãe na casa escondida no mato e confrontar-se com os fragmentos de sua própria alma, porém, Andy – assim como eu quando abri o livro – puxa a gaveta e (re) descobre sua verdadeira fotografia. E a fotografia assusta, como me assusta lembrar as noites de inverno na casa de Jacarepaguá. E, como eu, ele tem a chance de resolver o medo. Entretanto, descobrir o próprio significado é mais doloroso – e difícil – que enfrentar uma rua escura aos 38 anos de idade depois de assistir a um filme de terror. É um caminho ainda mais nebuloso.

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Descobri, em certo momento, que Biofobia é alta literatura com espirros de sangue, cheiro de cachaça e raspas decadentes de cocaína, porque disso é feito Andy, assim como de rejeição, autopiedade, egoísmo e rock’n’roll. Biofobia assusta, não apenas pelo clima tenso e o ambiente intimidante, mas porque investiga sem limites a alma humana. Existe algo mais aterrorizante?

Santiago, então, pegou-me pela mão e chamou-me a enfrentar esse medo. A promessa: o terror aumenta com o passar das páginas. Promessa cumprida. Entramos na pele do ex-astro, assistimos com seus olhos à verdade ser construída. E ela é feia. E fica ainda mais nítida à medida que os fragmentos espalhados pelo passado vão sendo colados, lado a lado. Até que explode. Andy descobre, enfim, do que é feito. Como lidará com isso, você só vai descobrir ao ler o livro. O que aconteceu comigo quando terminei de ler Biofobia… preferi ficar em casa com as luzes acesas.

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P.S.: Leia Biofobia ao som de Peter Murphy. Tenho quase certeza de que a música dele encharca a cabeça do bravo Andy mais que cachaça.

Fernando Abreu

Colaborador

Colaborador não é uma pessoa, mas uma ideia. Expandindo essa ideia, expandimos o domínio nerd por todo o cosmos. O Colaborador é a figura máxima dos Iluminerds - é o novo membro (ui) que poderá se juntar nalgum dia... Ou quando os aliens pararem com essa zoeira de decorar plantações ou quando o Obama soltar o vírus zumbi no mundo...

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