Mais que mil palavras

Vivendo na era da imagem, mas fazendo parte de uma geração anterior ao advento da internet, minha relação com a fotografia é certamente diferente da relação de quem já nasceu em um mundo digitalmente conectado. Para os meus pais e avós, essa febre de “selfies” e excesso de informação talvez seja um tanto perturbadora.

Hoje, totalmente (ou quase) integrada à cultura do culto a imagem, eu também tiro 738361562 fotos de um único evento e raramente “revelo” (imprimo) um quinto delas. O que era um registro de um momento especial, virou a janela pela qual observamos nossas vidas e a dos outros.

Um fato curioso sobre a relação dos mais antigos com a fotografia ocorreu em minha família: por volta dos anos 50 a revelação de fotos era algo muito caro, por isso, as famílias raramente tinham alguma foto de seus integrantes. Os mais abastados contratavam fotógrafos ou já possuíam câmeras para registrar alguns desses momentos especiais ou assustadores. Na casa da minha avó só havia retrato  de dois dos seus 5 filhos, sendo um deles o da minha mãe, filha do meio. Devido a um diagnóstico errado, meus avós foram levados a acreditar que ela não viveria muito, por isso, garantiram seu retrato. Ela está viva até hoje e o retrato é tão assustador quanto sempre foi, lembrando aquelas histórias de terror onde a pessoa sai de lá de dentro para te assombrar.

Imagem ilustrativa de uma pessoa desconhecida e tão assustadora quanto o retrato que falei

Curiosidades à parte, em uma das disciplinas que cursei no mestrado de comunicação, falamos sobre fotografia e eu descobri que a imagem 3D já existia na época do império e o equipamento, chamado de estereoscópio, foi trazido ao Brasil por um joalheiro da família real. As imagens reproduzidas dentro dele são muito mais precisas do que o que vemos no cinema. Ao observar uma fotografia com cerca de 100 anos, eu consegui entrar em uma paisagem que me deu uma sensação incrível de estar presente naquele cenário, observando o parapeito da janela, o carro e o cachorro que estavam mais à frente. 

A imagem, e especialmente a fotografia, tem uma peso tão significativo em nossa cultura que não faltam textos sobre o assunto. Um deles é o Câmara Clara, do semiólogo Roland Barthes. Embora tenha achado o texto do Barthes um pouco cansativo, entendo que sua intenção tenha sido chamar a atenção para o fato de que, sendo a fotografia também uma expressão artística, não é possível ignorar seus aspectos subjetivos e emocionais.

Barthes critica o fato de que grande parte dos livros sobre fotografia se dedique a explorar aspectos técnicos ou historiográficos desse tipo de expressão, no entanto, uma fotografia pode ser muito mais que apenas uma reprodução técnica de uma imagem.

“Toda fotografia traz consigo seu referente”, ou seja, é impossível dissociar a imagem do que ela representa. Ainda assim, a fotografia há muito tempo deixou de ser apenas uma forma de representação da realidade para se tornar um processo artístico.

Nesse sentido, o que Barthes faz em seu livro, como alguns pesquisadores atestam, é uma espécie de romance da fotografia ou talvez, a filosofia da fotografia, explorando por meio das palavras, toda poesia e subjetividade que podem ser encontradas em uma imagem. Afinal, imagem também é uma forma de linguagem.

Quando fui parar dentro da fotografia usando um estereoscópio

Já para o especialista Boris Kossoy, a fotografia tem importância histórica inegável. Mesmo em casos de produções tidas como artísticas, essas produções estão inseridas em um contexto e sabemos que os contextos influenciam muito a produção artística em todos os momentos históricos. Não à toa, é à Arte que recorremos quando precisamos estudar momentos históricos onde o acesso à documentação é escasso, como em períodos ditatoriais. Por isso que muitos estudiosos reforçam a ideia de que é por meio da expressão artística como o teatro, a fotografia, a literatura que podemos encontrar pistas sobre estes períodos conturbados.

Uma das minhas fotografias favoritas, esta imagem com as patas de cavalo foi tirada em Sevilha pelo fotógrafo João Correia. Fotógrafo da National Geographic, João ganhou o prêmio Jabuti por melhor livro de Turismo com Lisboa em Pessoa, livro que traz fotografia de Lisboa a partir do olhar de poetas Lisboetas como Fernando Pessoa. O fotógrafo também publicou mais outros livros com a mesma proposta, onde ele passa alguns meses lendo poesias e livros de autores locais e em seguida faz um guia turístico com fotografias tiradas a partir de um olhar dos autores que leu. Esta fotografia é inspirada na Sevilha de João Cabral de Melo Neto.

Já a imagem com o clube da esquina mostra uma outra perspectiva feita pelo quadrinista Laudo Ferreira em um álbum em homenagem a estes artistas. Em seu traço, o fotógrafo está presente na imagem, então a perspetiva é alterada. Não estamos mais vendo uma imagem a partir da perspectiva do fotógrafo, mas de um outro observador.

Uma outra dica sobre uma narrativa que aborda nossa relação com a fotografia é o filme Mil Vezes Boa Noite, com Juliete Binoche. O drama fala do dilema de uma fotógrafa de zonas de conflito sobre continuar a arriscar a vida ou ficar mais próxima de sua família, mas acima de tudo, traz uma reflexão sobre até que ponto um fotógrafo pode ou deve interferir em um evento, como a preparação de uma menina para carregar explosivos e se matar em um atentado terrorista.


Esse mesmo questionamento sobre o papel do jornalista diante de uma tragédia custou a vida do premiado fotógrafo  Kevin Carter, após ter registrado essa imagem: Ganhadora do prêmio Pulitzer de fotografia em 1994, a foto tirada no Sudão causou uma repercussão tão negativa que Carter acabou se suicidando um ano depois.  Acusado de não ajudar o menino da foto, que no fim das contas foi assistido por ele em seguida e pela ação da ONU no local, Carter não conseguiu lidar com o julgamento que passou a ser feito dele. O menino, que viveu até 2006, e morreu adulto em decorrência de uma febre, ficou sozinho por alguns segundos no abrigo em que estava, tempo suficiente para que o abutre se aproximesse e Carter registrasse o momento antes de prestar assistência com outros fotógrafos e médicos que estavam no local.


Por isso, quando penso no impacto que a imagem tem em nossas vidas, não consigo me distanciar do fato de que talvez estejamos banalizando algo que deveria ser um registro de algo significativo, ao mesmo tempo que participo ativamente dessa cultura onde a imagem se tornou o centro de nossas vidas. Não chega a ser uma crítica, mas uma reflexão mesmo, afinal, tudo isso e sintomático e revela muito sobre nossos hábitos e sobre nossa relação com as mídias e com os outros. Como pesquisadora de comunicação, sei que esse contexto será (já é, na verdade) estudado e fornecerá pistas sobre nosso comportamento, por isso a importância de se pensar sobre o assunto de forma crítica.

Saiba mais:

BARTHES, Roland – A Câmara Clara: notas sobre a fotografia – RJ, Nova Fronteira, 1989
KOSSOY, Boris – Fotografia e História – SP, Ateliê Editorial, 1989.

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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