Mas o que Diabos é Arte, Afinal?

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Sempre tentei fugir desta pergunta, mais por desnecessidade prática do saber (que não impede o apreciar) do que pela complexidade da resposta. Contudo, ao estudar e trabalhar com videogames, acabo me questionando – e sendo questionado – sobre seu status. É inegável sua natureza cultural, mas e artística? Videogame é uma forma de arte? Não há uma resposta simples. A constatação de sua natureza depende do que se entende como Arte. Logo, é preciso ter em mente o que leva um objeto a ser visto desta forma. No caso dos videogames, já deixo clara minha posição: sim, são, potencialmente, obras de arte – potencialmente porque não é qualquer jogo que deve ser classificado assim, já que depende de uma série de quesitos subjetivos.

Isto me leva a uma observação importante: devido ao caráter extremamente subjetivo do tema, optei por apresentar o texto em primeira pessoa a fim de destacar a pessoalidade do conteúdo.

Não há um conceito de Arte universal, aceito por todos; o que existe são tentativas, considerações. Para Gombrich, “nada existe realmente a que se possa dar o nome Arte. Existem somente artistas. Arte com A maiúsculo não existe.” Isto ocorre porque é uma palavra que engloba significados diversos, em tempos e lugares diferentes. Sua definição está em constante mudança. Fatalmente, um conceito geral de Arte está preso ao contexto em que se vive. Por isso, é preciso sempre observar o ambiente sociocultural.

Modelo da casa de um chefe haida do século XIX (noroeste da América do Norte) com três dos chamados mastros totêmicos, colocados lá para representar lendas e não por prazer ou decoração.

No passado, a relação entre arte e técnica era muito próxima, não havendo, muitas vezes, distinção entre elas. Por exemplo, Gombrich, em A História da Arte, relata que a atitude a cerca da pintura e estátuas era, em geral, semelhante à postura sobre a arquitetura – a natureza funcional coexistia com a contemplativa. Para o homem primitivo (aquele dos primórdios da humanidade), “não há diferença entre edificar e fazer imagens, no que se refere à utilidade. Suas cabanas existem para protegê-los da chuva, do sol e do vento, e para os espíritos que geram tais eventos; as imagens são feitas para protegê-los contra outros poderes que, para eles, são tão reais quanto as forças da natureza.”

Prefiro pensar Arte a partir de um dado concreto, da própria obra. Como Umberto Eco que, em A Definição da Arte, afirma que a obra de arte é um fato comunicativo pedindo para ser interpretado e, assim, completado por um apreciador. Para ele, dois aspectos estão implícitos na noção de obra de arte:

“a) o autor realiza um objeto completo e definido, segundo uma intenção bem precisa, aspirando uma fruição que o reinterprete assim como o autor o pensou e quis; e b) o objeto, no entanto, é desfrutado por uma pluralidade de fruidores e cada um deles levará ao ato de fruição as próprias características psicológicas e fisiológicas, a própria formação ambiental e cultural e as especificações da sensibilidade que as contingências imediatas e a situação histórica comportam; portanto, por mais honesto e total que seja o empenho de fidelidade à obra a ser apreciada, cada fruição será inevitavelmente pessoal e restituirá a obra num de seus aspectos possíveis”.

Uma obra de arte está diretamente relacionada a um processo de significação. Ela deve ter um significado criado pelo artista ou por quem a aprecia. O termo processo é importante, pois envolve a ação de “significar”, podendo ultrapassar o significado original do objeto. Sendo assim, Arte é um processo tripartite: artista-obra-usuário; onde há intenção de pelo menos uma das pontas em criar uma mensagem por meio de uma roupagem estética, formal, material. E esta mensagem vai desde uma crítica social ou uma história até simplesmente uma afetação por meio da beleza – entendendo que o “Belo, junto com gracioso, bonito ou sublime, maravilhoso, soberbo e expressões similares, é um adjetivo que usamos frequentemente para indicar algo que nos agrada. (…) É bela alguma coisa que, se fosse nossa nos deixaria felizes, mas que continua a sê-lo se pertence a outro alguém.” (Umberto Eco, em História da Beleza).

Eco também chama atenção à importância da intencionalidade ao explicar que entender uma obra é identificar, na origem da forma, uma intenção formativa. “Ora, o primeiro passo para interpretar uma obra de arte é buscar uma intenção originária e o primeiro passo para fazer uma obra de arte é estabelecer uma intenção formativa” (Eco, em A Definição da Arte). Nem sempre as intenções de artista e observador coincidem, mas é justamente isso que enriquece ainda mais uma obra de arte – as múltiplas interpretações.

Produzir uma obra de arte é fazer ou imaginar palavras, sons, cores ou outros materiais em determinada ordem. O essencial da operação não está necessariamente no executar, no construir algo, mas no escolher aquilo que se faz. Umberto Eco utiliza como exemplo um seixo. A princípio, uma simples rocha presente na natureza, mas quando alguém o recolhe, dentre centenas de outros, e passa a exibi-lo como ‘seixo artístico’ está efetivamente fazendo algo. Neste caso, atravessado por uma intenção formadora, o artista “cumpre uma série de gestos através dos quais retira o seixo de sua convivência habitual com o terreno e a paisagem circundante e – isolando-o – estabelece o seixo no repertório do contemplável com um ato de autoridade”.

Neste momento, destacam-se três quesitos fundamentais para ou criar uma obra de arte ou transformar um objeto em uma: intenção, escolha/ação e autoridade. São eles que separam artistas de verdade de meros mortais… É preciso sabedoria para formular a intenção, habilidade para fabricar algo sensível e conhecimento para ter autoridade naquilo. Estudar a história da arte, seus estilos, características e contextos, é o que capacita alguém a gerar ou, acima de tudo, julgar uma obra. Por isso, para a concepção ou validação de uma obra de arte, é preciso conhecer sobre o assunto, não basta pintar linhas coloridas aleatoriamente em um papel e chamar de Arte – da mesma forma, ver arte em algo à princípio não artístico não te transforma automaticamente em um artista ou sábio. Neste caso, a intencionalidade não está presente apenas no significado da obra, mas também na organização, equilíbrio, tipo de material, referências anteriores etc.

A mutabilidade deste conceito geral permite o aumento do escopo daquilo que pode ser Arte. Conforme citei anteriormente, desde que atenda aos requisitos, algo originalmente não entendido como obra de arte é passível de ter sua natureza alterada – depende apenas de uma das pontas do processo. Separei alguns exemplos para ilustrar esta parte, de coisas não artísticas que passaram a ter este status posteriormente devido ao olhar de um artista ou de um usuário (crítico, estudioso, pesquisador etc.).

Fonte, de Marcel Duchamp (1917)

Duchamp escolhia objetos prontos, dava nomes provocativos, assinava seu nome e os exibia como obras de arte. Fonte faz parte do movimento dadaísta, lançado por Duchamp e outros artistas como uma forma de protesto às mortes da Primeira Guerra. O objetivo do movimento era esclarecer ao público que todos os valores morais e estéticas estabelecidos perderam o sentido devido a catástrofe gerada pela guerra. Pregavam o non-sense e a anti-arte como uma forma de vingança – não em uma tentativa de acabar com a arte, mas expandir suas fronteiras. Embora pareça um movimento negativo, devido a aparente revolta, também foi libertador, pois permitiu uma viagem pela mente criativa.

Casa Batlló, de Antoni Gaudí (1906)

Reformado por Gaudí para superar as casas vizinhas em modernidade e originalidade, o edifício foi transformado em uma verdadeira obra de arte funcional. Hoje, a casa é utilizada basicamente para visitação, mas originalmente foi concebida como habitação.

A verdade é que o valor estético muito elevado pode alterar a percepção sobre o objeto e, assim, atribuir caráter artístico ao que antes seria apenas design. A Casa Batlló evidencia isto ao ser cada vez mais visitada para ser admirada por suas referências aos mundos animal e vegetal.

Bisão (15.000-10.000 a.C.)

Localizado em Altamira, Espanha. Seu valor original estava muito mais ligado à magia e praticidade do que a contemplação estética. As pinturas rupestres não foram originalmente obras de arte como concebemos atualmente; este julgamento veio muito (muito!) tempo depois através dos olhos de quem as contemplou. A Caverna de Lascaux é bem famosa e pode ser vista neste tour virtual.

Cristo lavando os pés dos apóstolos (séc. XI)

Nesta iluminura presente em um livro dos evangelhos, o importante (a intenção) era o relato do Evangelho de S. João (XIII, 8-9), quando Cristo, após a Última Ceia, lavou os pés dos discípulos. Toda a composição é pensada para ilustrar o diálogo entre Pedro e Jesus. Neste período, as imagens serviam para recordar os ensinamentos e manter viva a memória dos episódios sagrados. A parte latina do Império Romano adotou este ponto de vista, como pode ser percebido na fala do papa Gregório Magno, que viveu no final do séc. VI: “a pintura pode fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que sabem ler.” Nem todos os cristãos concordavam com esta postura, constituindo uma das razões do Império Romano do Oriente (cuja capital era Bizâncio) recusar a liderança do papa latino. Em 754, a arte religiosa foi proibida na Igreja Oriental. Por sua vez, outro grupo contrário atribuía às imagens um valor mais que didático, elas eram, acima de tudo, sagradas, consideradas reflexos misteriosos do mundo sobrenatural.

Nesta iluminura presente em um livro dos evangelhos, o importante (a intenção) era o relato do Evangelho de S. João (XIII, 8-9), quando Cristo, após a Última Ceia, lavou os pés dos discípulos. Toda a composição é pensada para ilustrar o diálogo entre Pedro e Jesus. Neste período, as imagens serviam para recordar os ensinamentos e manter viva a memória dos episódios sagrados. A parte latina do Império Romano adotou este ponto de vista, como pode ser percebido na fala do papa Gregório Magno, que viveu no final do séc. VI: “a pintura pode fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que sabem ler.” Nem todos os cristãos concordavam com esta postura, constituindo uma das razões do Império Romano do Oriente (cuja capital era Bizâncio) recusar a liderança do papa latino. Em 754, a arte religiosa foi proibida na Igreja Oriental. Por sua vez, outro grupo contrário atribuía às imagens um valor mais que didático, elas eram, acima de tudo, sagradas, consideradas reflexos misteriosos do mundo sobrenatural.

Os artistas da arte medieval “não se propunham criar uma semelhança convincente com a natureza ou fazer belas coisas: eles queriam transmitir a seus irmãos de fé o conteúdo e a mensagem da história sagrada.” No século XII, “a pintura estava, de fato, a caminho de se converter numa forma de escrita por imagens (…). Sem esses métodos, os ensinamentos da Igreja nunca poderiam ter sido traduzidos em imagens” (Gombrich, em A História da Arte). Assim, a pintura religiosa desta época, inicialmente usada para ilustrar os ensinamentos, educar aqueles não letrados ou ser usada como fontes sagradas de contemplação com o divino, tempos depois passou a ser vista como obra de arte.

Compreendo que é muito difícil aceitar que um mictório ou um quadrado preto sobre um fundo branco possam ser classificados como arte. É, para alguns, uma quebra de paradigma radical e, muitas vezes, indesejada. Não queremos sair de nossa bolha, não queremos contrariar a “tradição”. Talvez, a dificuldade em aceitar um diferente conceito para a Arte esteja na luta por romper com velhos hábitos. Segundo William James, em Principles of Psychology, “o hábito, que serve como uma poderosa balança da sociedade, é ao mesmo tempo o seu mais precioso instrumento de conservação.” Ocorre uma “acomodação a um mecanismo de reflexos que impede qualquer abertura posterior para novos gestos – que impede a reflexão sobre a própria possibilidade de novos gestos” (Umberto Eco, em A Definição da Arte).

O hábito seria uma constante segura, como são as leis da natureza… É um “esconder-se por trás da tradição” para manter o que acredita ser imutável e natural. Isto explica a reação negativa aos primeiros impressionistas no fim do séc. XIX, que “pediam” aos visitantes a reaprender a olhar, ou seja, a romper com os hábitos já consolidados. 

O nome impressionismo veio da crítica de um escritor sobre o quadro Impression du Soleil Levant, de Monet, revelado na primeira exposição do grupo em 1874. A crítica era depreciativa, mas os artistas gostaram do nome e passaram a adotá-lo. A inovação dos impressionistas estava em quebrar com a tradição idealista ou acadêmica, que buscava a retratação “perfeita” da realidade. Para fazer isso, eles simplesmente levaram o estúdio para céu aberto e passaram a usar, e valorizar, a luz natural sobre os objetos. Para nós, uma pintura como a de Monet não causa tanto estranhamento, chega até a ser agradável. Mas imaginem para uma sociedade não tão íntima com imagens e fortemente acostumada com figuras perfeitas, volumosas, simétricas, iluminadas, em perspectiva e representadas em situações divinas, como a Vênus, de Cabanel:

O choque foi grande e os críticos rejeitaram as mudanças. Toda a novidade da ênfase na luz e sombra natural, movimento, cor e instantâneo; e das temáticas da natureza e acontecimentos cotidianos, comuns, reais, não foram suficientes para considerar o movimento como expressão artística. Acredito que o videogame, como expressão artística, sofra desta mesma resistência em romper com hábitos…

Voltando ao conceito de Arte, um bom exemplo sobre sua importância é o evento ocorrido em 2012 quando um confeiteiro de Denver, Jack Phillips, negou o pedido de um bolo para um casal homoafetivo. A princípio, alegou ferir sua religião, mas, ao final, incluiu a defesa de que profissionais criativos, artistas, devem ter a liberdade de decidir para onde ir, quais obras de arte criar e quais negar. O caso estava na Suprema Corte americana – a decisão saiu em junho de 2018. Os advogados de defesa argumentavam que “um bolo de casamento é a peça central da celebração; ele anuncia, pela voz de Phillips, que um casamento ocorreu e deve ser celebrado. O governo não pode impedi-lo de falar essas mensagens com seus lábios ou expressá-las através de sua arte.” Segundo eles, é um caso de Primeira Emenda, pois ao criar um bolo, o confeiteiro está engajado em uma forma de discurso ao se expressar artisticamente por meio de uma “escultura temporária”.

A questão aqui é a intencionalidade. O objetivo da defesa é garantir a vitória a qualquer custo. Sua estratégia é atribuir um significado elevado ao objeto, como se o ato criativo tivesse uma intenção de construir um discurso artístico, enquadrando-se no direto pela liberdade de expressão. O próprio Phillips defende esta ideia ao afirmar que seus “bolos artísticos” expressam ideias a respeito do casamento – negar seria uma manifestação ideológica e religiosa.

O problema argumentativo começou quando se apelou para a existência de uma expressão artística inerente à confecção do bolo. A princípio, não estaria errado, pois compreende o ato de atribuir uma intenção posterior a um objeto já criado (a presença de valor estético é inegável aqui). No entanto, pretende-se imputar teor artístico no momento da confecção, mesmo estando claro que ele não existia (a inicial alegação religiosa é uma prova disto). Obviamente, é possível escolher um bolo e transformá-lo em obra de arte, no entanto, inventar uma intenção prévia, como se ela sempre estivesse lá, não. Conveniência não faz brotar intenção…

Umberto Eco afirma que identificar um objeto como possível obra de arte “quer dizer reconhecer em suas linhas formativas analogias dotadas de determinadas constantes estilísticas de determinada arte de determinado período”. Ou seja, há um trabalho erudito nesta transformação da natureza do objeto que requer um mínimo de conhecimento, não é simplesmente apontar e classificar. Apreciação estética, interpretação, analogias… Um processo complexo é necessário para validar algo deste nível. Não é porque o conceito de Arte permite uma abertura grande de possibilidades que qualquer coisa é arte ou qualquer pessoa é capaz de atribuir este status

Este vídeo sobre arte abstrata é bem interessante.

Uma coisa é certa: para entender o que é Arte, é preciso começar a vivê-la – tanto diretamente, contemplando obras expostas em museus e exposições, quanto indiretamente, estudando sobre o assunto por meio de livros, documentários e debates. Sem isto, o indivíduo provavelmente cairá na besteira de confundir gosto pessoal com conceito ontológico.

E o pior: vai fazer isto em um textão no Facebook

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

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