Pessoas-Pássaro (Festival do Rio 2014)

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A queda do muro de Berlim, a globalização e a Internet desfizeram linhas imaginárias de fronteira por toda parte. Nunca estivemos tão conectados, mas certas ilhas continuam difíceis de atingir.

É o que parece evidenciar a primeira sequência do filme, na qual visitamos os pensamentos, conversas e playlists musicais dos passageiros de um ônibus em Paris, que deslocam-se no tempo e no espaço, agarrados a suas pastas, seus fones de ouvido, seus celulares. Dentre eles, a jovem Audrey, que chega à conclusão de que passa 10 horas por semana no trajeto até o trabalho.

Gary Newman é um bem-sucedido executivo do Vale do Silício. Em Paris para uma reunião de negócios, e com decolagem para a Índia já agendada para o dia seguinte, ele não consegue pregar os olhos em sua confortável e solitária suíte do Hilton, oprimido por uma angústia existencial que lhe causa ataques de ansiedade e falta de ar.

Horas antes, ainda em reunião, um raro momento de dispersão é proporcionado por um pássaro. Gary fixa os olhos no pequeno pardal do lado de fora do prédio e, junto dele, sentimos toda aquela gravidade desaparecer por alguns segundos.

Gary não sabe, mas na noite que passou em claro no Hilton, na noite em que tomou a maior decisão de sua vida, em que decidiu largar tudo – sua esposa, seus filhos, seu emprego, seu lar -, aquela pequena ave estava lá, escondida em seus pensamentos, reduzida a seu principal conceito: a liberdade.

Audrey é camareira no Hilton. Embora charmosa, ela é uma ilha cercada de hóspedes por todos os lados, que a ignoram.

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Audrey está encarcerada em sua rotina sem novidades, rígida e claustrofóbica. Ela sente a vida passar por ela. A vida de outros, inúmeras pessoas, esboçadas pelos dejetos que ela recolhe nos quartos vazios, pelos objetos que deixam.

Numa destas noites, quando falta luz momentaneamente, ela sobe as escadas do hotel em busca de claridade, e, no terraço, depara-se com um pequeno pássaro – antes que percebamos, ela se torna o pássaro.

Em seguida, a ave-Audrey, livre das correntes conceituais da pessoa-Audrey, salta no vazio. Como se vivesse um sonho, ela explora suas recém-adquiridas habilidades, bate asas e observa seus colegas de trabalho conversarem.

Entretanto, embora sinta-se minúscula e ainda mais anônima, ela passa a ser notada. Numa única noite, torna-se uma presença para um funcionário sem-teto, um incômodo para jogadores de cartas, a caça para uma coruja, um modelo para um desenhista, e um estalo para Gary.

Despido de trajes frios e formais, Gary está ao telefone com sua irmã, tranquilizando-a, pedindo para ela não se preocupar, pois ele agora está em paz. Na esteira da rodoviária ou aeroporto em que está, ele vê a ave-Audrey, que o seguiu até ali, pousada no corrimão, e é quando sentimos o estalo.

Pela manhã, Audrey tornou-se pessoa novamente. Mas não a mesma. Descalça, despenteada, livre e relaxada, ela esbarra em Gary. Pela primeira vez eles falam e sorriem, e seus olhos se tocam. Não mais ilhas. Pessoas-Pássaro.

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Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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