Transtorno mental e evolução em Fragmentado, de M. Night Shyamalan

Você está visualizando atualmente Transtorno mental e evolução em Fragmentado, de M. Night Shyamalan

Apesar da crítica especializada não ser unânime em relação a Fragmentado (2016), o filme traz uma discussão importante que já foi levantada outras vezes em outras mídias. Em Corpo Fechado (Unbreakable, 2000), do mesmo diretor, o questionamento sobre nossas limitações físicas ou mentais, muitas vezes apresentadas em forma de uma doença, também foi apresentado no contraste da relação entre Elijah Price (Samuel L. Jackson) e David Dunn (Bruce Wills), quando Dunn se dá conta que é praticamente indestrutível após sobreviver a um acidente de trem e a partir daí tem que lidar com a loucura de quem seria a sua versão oposta, o Mr. Glass (Samuel L. Jackson), cujos ossos são tão frágeis quanto vidro e por isso ele precisa levar uma vida de muitos cuidados em uma cadeira de rodas.

Quando somos apresentados a Kevin, personagem vivido por McAvoy em Fragmentado, entendemos que sua personalidade foi fragmentada em outras 22 identidades devido a traumas sofridos na infância. A psiquiatria já registrou um caso, que também acabou virando filme, de uma paciente que teria sua identidade fragmentada em múltiplas personalidades, Sybil (1976).

No entanto, a abordagem da psiquiatra interpretada por Betty Lynn Buckley, reflete a perspectiva de M. Night Shyamalan de que traumas não nos tornariam pessoas mais fracas, como geralmente as pessoas com algum tipo de transtorno são enxergadas. Em sua fala em uma conferência, a Drª Fletcher sugere que por meio dos traumas, seu paciente foi capaz de acessar áreas do cérebro que normalmente não acessamos, possibilitando que ele pudesse moldar a fisiologia do seu corpo de acordo com cada personalidade que possui. Isso explicaria porque uma personalidade é diabética e precisa tomar insulina, enquanto as outras não. Não só isso, a 24ª personalidade que está para emergir, chamada de “a fera”, seria o ponto mais alto da evolução humana, pois possui uma força sobrenatural, entre outras características.

The broken ones are the more evolved – Os sofridos são os mais evoluídos

No entanto, essa ideia de que o que não nos mata, só nos fortalece, não é exatamente uma hipótese compartilhada apenas no universo fictício dos filmes e quadrinhos – sim, a mutação em X-Men não seria exatamente isso para alguns? Uma evolução?

Apesar do estigma que os transtornos psiquiátricos carregam, há diversos estudos que apontam para o fato de que gênios da ciência e das artes sofriam de algum desequilíbrio, já que a genialidade e a criatividade, cada vez mais têm sido associadas a variações na composição química do cérebro de algumas pessoas.

Um artigo recente publicado no site pensar contemporâneo, apesar do tom de brincadeira ao se referir a fatos chocantes sobre pessoas extremamente inteligentes, relaciona alguns artigos sobre a relação de transtornos mentais e inteligência. Não faltam exemplos de artistas que sofriam de algum distúrbio mental e acredita-se hoje que muito de sua produção se deva justamente às peculiaridades de seus cérebros, decorrentes de um desequilíbrio químico.

O próprio Bruce Wills já estrelou em um filme (Código para o Inferno, 1998) em que um menino com autismo é quem consegue decifrar um código criptografado do governo que nem mesmo as pessoas de Q.I mais elevado foram capazes. Em Uma Mente Brilhante (2002), o matemático John Nash luta contra a esquizofrenia enquanto resolve complicadas equações, se tornando um dos mais importantes cientistas em sua área.

Então, como levantado pela Dr.ª Fletcher, e se essas deficiências não nos fizessem inferiores, mas na verdade, superiores? Afinal, somos uma espécie em evolução e ainda sabemos muito pouco sobre o funcionamento do nosso cérebro. Será que daqui a alguns anos não descobriremos que estes transtornos são na verdade um meio da mente se expandir e que devido à nossa falta de conhecimento sobre ela, não entendemos que eles seriam parte de um processo evolutivo? Será que as futuras gerações não irão se beneficiar dessas alterações que ocorrem nos cérebros daqueles que são enxergados como deficientes ou doentes? O que é exatamente ser normal? A normalidade não é uma convenção que varia de acordo com a cultura e com a época?

Lógico que terminamos com mais perguntas do que respostas, mas não faltam artigos científicos sobre como os processos cognitivos nas mentes de pessoas portadoras de certos transtornos se dão de maneira mais eficiente. Por isso, ainda que não saibamos se é possível pensar nestes distúrbios como processos evolutivos do cérebro, no mínimo é possível refletir sobre o estigma que as doenças mentais ainda carregam e quem sabe, possamos discutir formas de acabar com ele. Para portadores de transtornos mentais é certamente melhor ser enxergado com um super-herói do que como uma pessoa com alguma deficiência, então, por que não pensamos que é possível?

Saiba mais:

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 2 comentários

Deixe um comentário