Trato Feito e as Lições do Príncipe

Você está visualizando atualmente Trato Feito e as Lições do Príncipe

Há um bom tempo, acompanho, religiosamente, as temporadas do programa Trato Feito, no History Channel. Pra quem não conhece, Trato Feito é um seriado, estilo Reality Show, que documenta o dia-a-dia de uma das maiores lojas de penhores de Las Vegas, nos Estados Unidos.

A loja é administrada por uma família, composta pelo “Velho”, patriarca e co-fundador da loja com seu filho; Rick Harrison. Além disso, contam com o trabalho de Corey, ou Big Hoss, filho de Rick, e Chumlee, amigo de infância de Corey e alívio cômico do programa. O show retrata um dia-a-dia recheado de ofertas de vendas de produtos que vão desde um vinho, supostamente antigo e raríssimo, que não serve para mais nada (fora guardado, durante décadas, de maneira errada, transformando-se num intragável vinagre), até preciosidades históricas, como uma 1ª edição do Drácula, de Bram Stoker, autografada pelo próprio autor.

TF-StokerBram

As peças são oferecidas por pessoas (muitas vezes visivelmente desesperadas pelo dinheiro) aos donos da loja. Dependendo do grau de raridade, valor ou dúvida, é chamado um especialista para dar um parecer em frente às câmeras, confirmando ou não se a peça é especial. A partir daí, ofertas são feitas e se parte para uma negociação, onde tanto os donos da loja como o vendedor tentam chegar a um meio termo no preço a ser pago pela peça ofertada.

TF-TheDuke
Danny “O Duke” Koker, especialista em carros antigos, é um dos que frequentemente aparecem no programa. Fez tanto sucesso com seu jeitão que acabou ganhando uma série própria, spin-off de Trato Feito, chamada Loucos Por Carros

Depois dos primeiros episódios vistos, comecei a me perguntar o que me chamava tanto a atenção nesta série. A primeira resposta, fácil, é ligada à própria razão de ser do canal que produz o programa – os relatos dados pelos especialistas costumam ser ricas e pequenas aulas de história dos objetos em questão. Além disso, o próprio Rick é um excepcional conhecedor de objetos históricos de inúmeros campos do conhecimento humano, sendo ele também um dos grandes especialistas da loja. São poucas as vezes em que ele se equivoca em suas avaliações.

TF-info
Ao mesmo tempo que os especialistas, pequenas legendas também vão aparecendo na tela, dando informações adicionais a respeito da peça em questão no melhor estilo “Conhecimentos Gerais”.

A segunda possibilidade de meu apreço tão grande pelo programa se deu pela própria personalidade dos protagonistas da série. Todos de personalidades fortes, bem definidas, e cujo contraponto dá um colorido especial e divertido ao cotidiano da loja. O Velho, sempre comedido, falsamente ranzinza (é evidente que ele gosta de todos de sua família); Rick, nitidamente o mais inteligente do grupo, negociador hábil e grande conhecedor do seu trabalho; Corey “Big Hoss” Harrison, o filho que quer provar seu valor ao pai mas não sabe como, e alia essa insegurança a uma arrogância muitas vezes pueril; e Chumlee, o bobo da corte conveniente; um cara que se finge de bobo, tem ótimas tiradas engraçadas, mas que de bobo não tem nada.

TF-CHUMLEEVELHO
Chumlee e o Velho: duas versões pra uma soneca.

Mas não é só isso que me traz tanto gosto ao programa… Então, o que seria?

Uma vez, vendo certo episódio, enquanto Rick dava algum conselho a Corey (não me lembro de qual, agora), me lembrei, não sei por quê, do Príncipe, de Maquiavel. Ao dar uma nova folheada rápida no livro, descobri por que gosto tanto da série – há, a meu ver, grande identidade do modo de agir dos membros da família Harrison com alguns pensamentos na obra de Maquiavel. E isso não é nem um pouco ruim, como o senso comum pode vir a entender.

TF-RICKECOREYELYNYRDSKINIRD
Corey e Rick pechinchando com a grande banda Lynyrd Skynyrd.

Em determinado momento, Maquiavel nos diz que:

Um príncipe deve, pois, aconselhar-se sempre, mas quando ele julgar que o deve e não quando os outros desejarem; antes, deve tirar a todos a vontade de aconselhar algo sem que ele o peça. Entretanto, deve indagar muito e ouvir com paciência a verdade a respeito das coisas indagadas. Mesmo, julgando que alguém, por medo, não lhe diga a verdade, não deve o príncipe deixar de mostrar o seu desprazer. Muitos entendem que os príncipes que adquiriram reputação de prudentes, devem-no não à sua natureza, mas aos bons conselhos dos que lhe estão em volta (…)

Rick Harrison, como bom Príncipe e aspirante ao trono de seu pai, o Velho, nada mais faz do que aconselhar-se sempre. E, inclusive, deixa bem claro a seu filho e a Chumlee que eles façam o mesmo: nunca tomem nenhuma decisão sem se aconselhar com quem entende do assunto. Atitudes tomadas sem a devida confirmação especializada são sempre punidas. Tradição, aliás, é coisa muito enfatizada no programa Trato Feito. Tanto nos processos de negociação, quanto nos de busca de informações, Rick segue o caminho trilhado pelo pai e o aperfeiçoa. Assim como nos fala Maquiavel, quando diz que:

Os homens percorrem quase sempre estradas já andadas. Um homem prudente deve portanto escolher os trilhos já percorridos pelos grandes homens e imitá-los; deste modo, ainda não sendo possível correr fielmente por esse caminho, nem atingir pela imitação inteiramente as virtudes dos grandes, sempre muita coisa é aproveitada. Deve agir como os seteiros prudentes que, desejando alcançar um ponto muito afastado, e sabendo a capacidade do arco, fazem a pontaria em altura superior à do ponto que visam. Não o fazem certamente para que a flecha alcance aquele ponto: servem-se da mira elevada somente para acertar com segurança o local mais abaixo.

TF-COREYVELHO
Apesar de fingir desprezar e não dar ouvidos ao Velho, é evidente que Corey sente necessidade de seguir a tradição, através da conquista do respeito do Velho.

Aliás, o sistema de consulta de especialistas é ao mesmo tempo um complemento à autoridade de Rick e do Velho, e um formidável corta-argumento. Se o especialista diminui o valor da peça, o vendedor tem menor poder de barganha, deixando Rick com maior poder de persuasão; se o especialista, ao contrário, confirma a raridade ou exclusividade da peça, Rick pode ter um pouco mais de dificuldade na negociação do preço, mas geralmente prevalece, pois o vendedor é vencido por duas grandes forças – a autoridade e a necessidade. Conforme diz Maquiavel:

Além do mais, não se conseguem honestamente contentar os grandes sem ofender os outros, porém o povo pode ser satisfeito. Porque o desideratum do povo é mais honesto do que o dos grandes; estes desejam oprimir e aquele não quer ser oprimido. Contra a  hostilidade popular, não pode o príncipe jamais estar seguro, pois são muitos; com relação aos grandes, pode, porque são poucos. O pior que um príncipe pode esperar do povo hostil é que ele o abandone. Da inimizade dos grandes, porém, não só deve temer que o abandonem, mas que também o ataquem, pois estes têm maior alcance de vistas, e a astúcia é maior, e sempre têm tempo de se salvar, procurando achegar-se dos prováveis vitoriosos.”

O parecer abalizado de um especialista é a defesa contra os grandes, nada mais do que isso. Pois nada é maior e mais danoso, no ramo de venda de antiguidades, do que um laudo ou parecer científico contrário ao seu negócio.

TF-EXPERTDANA
Rick ouve atentamente a Dana Linett, outro especialista, expert em armas e artefatos antigos da história americana.

A impressão geral, de outro lado, é a de que Rick e Cia. acabam subvalorizando todos os produtos que lhes são oferecidos. Enquanto que, vez por outra, surpreendem, oferecendo valores maiores até do que o vendedor lhes propusera inicialmente. Me lembro dos casos de uma peça histórica, e de um anel de Futebol, quando Rick, surpreendentemente, fez ofertas bem maiores do que os vendedores sequer imaginariam. Mais uma vez, nossos protagonistas seguem, talvez sem querer, talvez não, outro dos mandamentos de Maquiavel, pois este deixa bem claro que mais vale um príncipe comedido nas finanças do que um liberal. Este acaba por tornar a generosidade um hábito, criando uma enorme carga tributária a um povo que, fatalmente, se voltará contra ele. Por outro lado, quando o príncipe é notoriamente miserável ou avaro, cada ato de generosidade é celebrado e lembrado, e retorna como força positiva.

TF-RICKMEME08

E, finalmente, Rick e o Velho, por mais que se impressionem com determinadas peças que lhes são oferecidas (como um Mustang Bullit GT 390, usado pelo ídolo de Rick, o ator Steve McQueen) e realmente queiram tais peças, sempre tentam manter a serenidade.

TF-BULLIT
Steve McQueen e seu fantástico Mustang, no lendário filme Bullit.

Finalmente nos diz Maquiavel:

(…) não deve ser, pois, crédulo o príncipe nem precipitado, nem assustar-se a si mesmo, mas agir equilibradamente, prudente e humanitário, para que a confiança demasiada não o faça incauto e a desconfiança excessiva não o torne intolerável.

Muitas vezes, com isso, os protagonistas chegam a dispensar peças autenticamente raras ou históricas, seja porque o preço é alto demais, ou porque o mercado é muito restrito, ou mesmo porque sua paixão pelo objeto nem sempre pode ser sinônimo de venda certa. O fato é que não é de paixão ou de generosidade que se vive numa loja de penhores – se vive de dinheiro. E dinheiro precipitado é nada mais que ventania.

Finalmente, descobri por que gosto tanto de Trato Feito.

TF-RICKMEME06

TF-RICKMEME09

TF-RICKMEME04

Colossus de Cyttorak

Detentor dos segredos da Mãe-Rússia, fã incondicional de jogos da antiga SNK (antes de virar esse arremedo, chamado SNK Playmore), e da Konami, Piotr Nikolaievitch Rasputin Campello parte em busca daquilo que nenhum membro da antiga URSS poderia ter - conhecimento do mundo ocidental. Nessa nova vida, que já conta com três décadas de aventuras, Colossus de Cyttorak já aprendeu uma coisa - não se deve misturar Sucrilhos com vodka, nunca!!!!

Este post tem 2 comentários

  1. $9217641

    Interessante, mas não o suficiente para me fazer ver a série.

  2. Don Vittor

    Cara, esta série é muito foda! Sempre vejo torço par eles levarem um belo calote! Viu o lance da placa de titânio de uma caça? Que no final era uma das únicas partes do jato que não era de titânio rs?

Deixe um comentário