Vale a pena iluminar de novo: Demolidor – Redenção

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O tipo de história que dá orgulho você ser fã de quadrinhos.Se você é um colecionador compulsivo de quadrinhos (assim como eu) com certeza já deve, principalmente nos tempos atuais, ter passado pelo dissabor de olhar suas compras (ou suas importações) e perceber que perdeu dinheiro (e tempo). Afinal, tudo é vendido como bombástico, fantástico, orgasmático e… Bom, às vezes você se sente como o sujeito que vai a um restaurante chique, pede o prato mais caro da casa e depois descobre que nada mais é do que um macarrão (insosso) com molho (pálido) em porções ínfimas decorando um prato nem tão bonito assim.

"Se ele for culpado, vou perder no tribunal. Posso viver com isso. Mas não quero ver o filho dela executado só porque não teve uma defesa decente. Com isso, eu não posso viver" -Matt Murdock-
“Se ele for culpado, vou perder no tribunal. Posso viver com isso. Mas não quero ver o filho dela executado só porque não teve uma defesa decente. Com isso, eu não posso viver.” -Matt Murdock-

Mas também já deve ter acontecido de você ver aquele título meio despretensioso largado ali na prateleira… Sabe aquele que você nem dá muita bola no começo, ignora umas duas vezes, depois dá uma olhadinha, coloca junto com as outras compras, devolve pra prateleira, coloca de novo com as outras e termina levando? Foi assim com esta série, lançada aqui pela Panini em um encadernado simples, que seria o primeiro Demolidor Anual.

"Renunciem ao pecado! Renunciem a Satã e suas obras! Renunciem aos livros e filmes de terror! Renunciem às histórias em quadrinhos aviltantes. Renunciem à bruxaria disfarçada de jogos de fantasia e RPG! Renunciem ao rock!" -Um pastor idiota, que insiste que tudo de bom é obra do Adversário-
“Renunciem ao pecado! Renunciem a Satã e suas obras! Renunciem aos livros e filmes de terror! Renunciem às histórias em quadrinhos aviltantes. Renunciem à bruxaria disfarçada de jogos de fantasia e RPG! Renunciem ao rock!”
-Um pastor idiota, que insiste que tudo de bom é obra do Adversário-

A história não é complicada. Sete anos antes, um garoto foi brutalmente assassinado em Redemption Valley, uma pequena cidade do Alabama. Um casal de adolescentes e o irmão retardado da garota são acusados pelo crime, que teria sido cometido com fins satanistas. A mãe do principal réu resolve ir até New York apelar para aquele que considera o melhor advogado de defesa do mundo: Matt Murdock.

"Você acha que aqui (na cadeia) é ruim? É um passeio comparado com a minha casa. Quer saber o que é uma prisão de verdade? Entra naquela sala (de orações)... cê nem precisa enxergar... dá pra sentir a podreira suando das paredes" -Joel Flood, principal acusado-
“Você acha que aqui (na cadeia) é ruim? É um passeio comparado com a minha casa. Quer saber o que é uma prisão de verdade? Entra naquela sala (de orações)… cê nem precisa enxergar… dá pra sentir a podreira suando das paredes”
Joel Flood, principal acusado-

Ao pegar o caso, ele logo descobre que não terá apenas que enfrentar as dificuldades legais. A imprensa, a polícia e o povo já elegeram os culpados e pretendem ver sangue. Há um fervor religioso permeando tudo,  além de uma antipatia declarada aos garotos por ouvirem rock pesado e declararem não acreditar em um Deus cristão. E por um fato que diz respeito a um deles especificamente, alvo da ojeriza maior da população.

O britânico David Hine, que já trabalhou com X-Men, Batman, Inumanos, Juiz Dredd e Spawn.
O britânico David Hine, que já trabalhou com X-MenBatman, Inumanos, Juiz Dredd e Spawn.

Não posso explicar mais, pois isso entregaria pontos importantes da trama. Este é um traço do texto que David Hine entregou: é enxuto, sem firulas, direto ao ponto. É como uma pessoa que defende seu ponto de vista citando exemplos com uma voz calma, mas firme. Ele não impõe: mostra e espera que você reflita.

Michael Gaydos. O norte-americano é conhecido principalmente pelo seus trabalhos em Alias e Powerless
Michael Gaydos. O norte-americano é conhecido principalmente pelo seus trabalhos em Alias e Powerless.

Acompanhando o ritmo, temos a arte de Michael Gaydos (só lembrando que as capas tem a marca altamente luxuosa do mestre Bill Sienkiewicz). É um traço que parece sempre casar bem com histórias mais pesadas, que refletem a pior realidade possível: a nossa.

Amostra da arte de Gaydos. Um detalhe interessante é que Murdock defende o garoto mesmo sem poder usar seus poderes pra saber se ele está dizendo a verdade.
Amostra da arte de Gaydos. Um detalhe interessante é que Murdock defende o garoto mesmo sem poder usar seus poderes pra saber se ele está dizendo a verdade.

Como operador do Direito, fiquei muito sensibilizado quando li Redenção. É um retrato perfeito de como deixamos de seguir regras simples e permitimos que as coisas se desvirtuem, para prejuízo da Justiça. Esquecemos fatos, deixamos de lado princípios, desprezamos regras para nos engajarmos no show que alguma pessoa resolveu que seria interessante transformar um caso similar a milhares de outros que não tiveram o azar de chamar a atenção.

"Na época eu era uma criança muito bonita. Ele me chamava de 'minha princesa'. E comecei a comer e comer, pois não queria ser a princesa dele." -Emily Flood, mãe do principal acusado-
“Na época eu era uma criança muito bonita. Ele me chamava de ‘minha princesa’. E comecei a comer e comer, pois não queria ser
a princesa dele.”
-Emily Flood, mãe do principal acusado-

Em Redenção, vemos uma polícia que sai de suas prerrogativas investigatórias pra exercer juízo de valor, forçando sua atuação pra justificar a conclusão a que chegaram, em vez de fazer o caminho inverso. Líderes populares (políticos e religiosos) se aproveitando da situação pra promover seus pontos de vista preconceituosos completamente desprovidos de embasamento. Vítimas sendo marginalizadas por julgamentos morais (a cena que explica as reservas do povo da cidade para com a família de um dos acusados é simplesmente revoltante!), tornando-as culpadas pelos próprios crimes que sofreram. E criminosos sendo tratados como vítimas, exibindo um ar debochado apoiado em segredos sujos e na manipulação da opinião pública. Relações familiares imundas ocultadas mais pelo véu que insistimos em colocar diante dos nossos olhos do que pelas paredes das casas de cada um. Vemos representantes do Estado empenhados mais em conseguir condenações do que em alcançar a Justiça, manipulando, omitindo, esquecendo…

"Quero ver meu filho crescer. Eu não quero morrer." -Joel Flood-
“Quero ver meu filho crescer. Eu não quero morrer.”
-Joel Flood-

De vez em quando, tenho o desprazer de assistir tais atos se desenrolando nas telas de tv. Coisas que ocorrem aqui, no nosso país. Não estou defendendo criminosos, estou defendendo julgamentos justos. Que princípios basilares do Direito sejam respeitados para os outros para que todos nós possamos ser beneficiados por ele. Detestaria que eu ou alguém próximo a mim sentasse no banco dos réus em um caso em que a Record ou a Globo já decidiram que o réu é culpado. Não quero trabalhar em um caso em que manifestantes agridem advogados na porta dos tribunais.

Demolidor Anual 1 - Redenção (Compilação da série Redemption, de seis edições) Roteiro de David Hine Arte de Michael Gaydos Editora original: Marvel Comics Editora: Panini Maio - 2006 Preço de capa: R$ 14,90
Demolidor Anual 1 – Redenção
(Compilação da série Redemption, de seis edições)
Roteiro de David Hine
Arte de Michael Gaydos
Editora original: Marvel Comics
Editora: Panini
Maio – 2006
Preço de capa: R$ 14,90

O fim da história, o momento em que Matt baixa a cabeça para o sistema e assiste a um assassinato estatal cruel, recusando o último pedido de socorro de alguém que ele agora sabe que é inocente, é de sensibilizar o coração mais duro. E de revoltar. Hine passou sua mensagem. Parabéns.

Texto originalmente publicado no Darth Chief.

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 3 comentários

  1. Renver

    Eu chorei como uma menininha lendo essa hq e chorei só de lembrar dela pelo belo texto.

    Parabéns pro autor.

    1. JJota

      Valeu, Renver.

      Olha, eu sempre fico doido quando releio essa história. É impossível não ficar revoltado nas passagens com o pai do menino assassinado, mas aquele final… O garoto lá, esperando que o Demolidor salve sua vida e…

      Putz!

  2. Givanildo Curcino

    Não acredito que demorei tanto tempo para ler essa HQ,achei sensacional,marcante,até merecia ter uma republicação com capa dura e um acabamento melhor.Uma história indispensável,não apenas para quem é fã do Demolidor,mas para quem curte quadrinhos no geral.Uma das melhores que já li,após ler,não tem como não ficar pensando na história.

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