Elysium – a segunda lição de como se fazer Ficção Científica de verdade.

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Há muito que tenho essa impressão de que a Ficção Científica não se sustenta enquanto gênero cinematográfico. O Drama, a Comédia, por exemplo, são gêneros que expressam, em simples palavras, conceitos que remetem a uma “predisposição do espírito”, digamos assim. Ou seja, quando falamos que vamos ver uma Comédia, esperamos, a princípio, que haverá diversão na película; o Drama, ao contrário, pressupõe preocupação, reflexão, histórias com reviravoltas; já o Suspense nos remete à tensão. Portanto, falar em gêneros cinematográficos significa falar, em último caso, em estados de espírito, induzidos pelo contexto que o filme, com sua história, direção, e atores, vai suscitar no expectador.

A Ficção Científica, ao contrário, nos remete ao “futuro”. Mas o que é o futuro, que não uma construção cultural, lingüística e narrativa, na verdade em tudo contemporânea ao presente? Portanto, em última instância, falar de futuro é falar do contemporâneo, falar dos sentimentos humanos, da vida, das emoções, enfim. Falar de tudo aquilo que é e sempre será humano: alegria, tristeza, compaixão, medo.

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Uma das coisas mais comoventes que já vi na minha vida, o discurso de morte do androide Roy Batty, em Blade Runner: “Já vi coisas… Que ninguém acreditaria… Naves de ataque em chamas nos limites de Orion… Vi tiros flamejando no portal Tannhäuser. Todos estes momentos… Vão se perder pelo tempo, como lágrimas (tosse)… Na… Chuva… É hora de morrer…

Nesse sentido, não existem obras de Ficção Científica. Existem dramas, comédias, suspenses, etc, que, porventura, se passam em ambientes imaginários, distantes de uma realidade imediata, num “contexto” de Ficção Científica. Deste modo, Ficção Científica não seria um fim, e sim um meio pra se chegar a um fim, que é tocar nos corações e nas cabeças dos expectadores, seja através da compaixão, seja através da reflexão de si e de sua realidade presente através de um falso distanciamento pra um tempo futuro –  seguindo aquele velho lugar-comum, que diz que somente analisamos melhor nosso contexto quando dele nos afastamos.

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Robocop: até que ponto um ciborgue segue cegamente suas diretivas, e a partir de que ponto ele é humano? Onde mora a consciência?

Mas por que eu dei essa volta toda? Pra falar de Elysium, o segundo (e novo) filme de Neil Blomkamp, que estreou recentemente nos cinemas do Brasil. Estrelado por Matt Damon, o filme faz muito bonito. Neil Blomkamp, que também é roteirista e produtor da bagaça, realmente entendeu a essência do que é contar uma história num ambiente futurista: é distanciar o expectador pra fazê-lo chegar mais perto de sua realidade imediata, e, com isso, provocar a reflexão.

Pra isso, ele repete a fórmula que criou no fantástico Distrito 9. Neste filme, o autor usa a Ficção Científica pra fazer uma duríssima crítica ao racismo e à exclusão social. O filme é tão contundente que é inevitável chegarmos ao meio do filme sem termos compaixão absoluta pelos camarões alienígenas. Em Elysium, o artista expande suas críticas de exclusão social, levando a crítica à mercantilização do bem estar, que agudiza a exclusão social. Explicarei a seguir.

Pra quem ainda não viu o filme, Elysium é uma estação espacial, orbitando em rota bem conjugada à Terra, pra onde os ricos fugiram, quando o planeta tornou-se uma favela global. O artista critica, com isso, a globalização e a lógica perversa do capitalismo, que, ao mesmo tempo em que aumenta exponencialmente a riqueza dos poucos, multiplica a pobreza dos muitos.

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Olhem o favelão que virou a Los Angeles de 2159…

Pra quem não sabe, Elysium faz referência aos Campos Elíseos da mitologia grega: um lugar do mundo dos mortos, governado pelo Hades, onde só moravam os virtuosos, heróis, poetas, etc. Poucos escolhidos viviam num lugar que era praticamente um playground eterno, com paisagens verdes, cujas vegetações floresciam o tempo todo, sem parar, e as pessoas não se cansavam, ficando dia e noite num frenesi de felicidade e divertimento eterno e doido. Neste sentido, a estação espacial é um show de referências: seus anéis internos são completamente arborizados, com jardins e florestas luxuriantes, e mansões com arquitetura acentuadamente Greco-romana, fazendo clara referência a esse fundo mitológico.

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Ou seja, Elysium é uma Angra dos Reis/Búzios espacial.

Por outro lado, Elysium também dispõe do ápice da tecnologia moderna. Em 2159, não só os ricos se isolam do resto do planeta, como também não sofrem de doença alguma. Dentro da estação, cada casa tem uma espécie de cápsula de cura que acaba com qualquer doença existente, deixando todos os habitantes saudáveis. Mas, só os “cidadãos” de Elysium têm acesso a essa tecnologia. O resto da população do planeta sofre com a falta de médicos, hospitais abarrotados e inexistência de tratamento adequado. Que realidade distante, não é?

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Acho que foi a corporação cápsula que projetou as cápsulas de cura pro filme.

Nesse contexto, Matt Damon é Max, um ex-preso, com extensa ficha criminal, que tenta se reabilitar de seu passado, e passa a trabalhar em uma fábrica que constrói robôs. Depois de um acidente na fábrica em que trabalha, Max se contamina com uma dose mortal de radiação, e só tem alguns dias de vida. A partir de então, seu grande objetivo é chegar a Elysium, e se curar em uma das cápsulas. Acontece que chegar em Elysium é quase impossível. Apesar das tentativas, quase todas as naves-coiote que tentam (a crítica aos coiotes que tentam levar os mexicanos à fronteira dos EUA é evidente) são abatidas, perpetuando a exclusão social. Mas Max tem um plano diferente: ele pede ajuda a Spider, o criminoso interpretado por Wagner Moura, e que parece ser o grande gerente dos coiotes na terra. Spider topa, mas com uma condição, que Max seqüestre o presidente da principal empresa integrante do consórcio que gerencia Elysium, e roube todos os dados do cérebro dele. Spider implanta um exoesqueleto no corpo de Max que quadruplica sua força, e manda ele pra missão junto com alguns soldados e o amigo de Max.

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Depois da missão bem sucedida (apesar das perdas dramáticas), começa a aventura de ida pra Elysium. E, durante todo esse tempo, Max será seguido por Kruger, um agente psicopata, estuprador e truculento vivido por Sharlto Copley, o ator que interpretou o protagonista de Distrito 9.

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Um vilão antológico. Vale a pena.

Portanto, o diretor realmente entende o que é ficção científica, e, se continuar fazendo filmes com essa consistência, tem tudo pra ser um grande nome da indústria do cinema. As atuações estão impecáveis: Blomkamp conseguiu fazer com que Matt Damon fique austero, tirando aquele sorriso constante (e às vezes desnecessário com o contexto do personagem) de sua interpretação. Seu personagem é sensível, dúbio e, acima de tudo, humano. Wagner Moura dá um show de interpretação como Spider e Sharlto Copley faz um vilão apoteótico, fantástico, que em alguns momentos chega a apagar Matt Damon da tela. Minhas únicas ressalvas, quanto à atuação, são relativas à Jodie Foster, que faz uma interpretação burocrática, previsível e quase estereotipada de vilã, e a Alice Braga, que não convence como mulher sofrida, muito menos como mãe de uma garota com leucemia em estado terminal.

De maneira geral, o filme foi muito bem pensado em inúmeros níveis e detalhes. O nível de realismo e imersão numa realidade futura mas não tão distante é palpável e rico. Os detalhes vão desde o nível da crítica social – que chama somente os habitantes abastados de Elysium de “cidadãos”, e faz alusão direta à cultura Greco-romana, que só considerava como cidadãos sua casta social mais alta – até o nível dos cenários: um dos carros de ataque de Max e seus parceiros é um Nissan GT-R 2009 todo envenenado e alterado. Ou seja, assim como os grandes criadores da Ficção Científica, ele mescla habilmente elementos antigos a inéditos, criando algo novo, fresco e verossímil, sem parecer falso, pois insere a novidade num contexto reconhecível e cotidiano.

É um ótimo filme. Quem ainda não viu, não pode perder essa segunda lição de Blomkamp de como fazer um verdadeiro filme de Ficção Científica. E, por favor, quem ainda não viu a primeira lição desse diretor, veja Distrito 9.

Colossus de Cyttorak

Detentor dos segredos da Mãe-Rússia, fã incondicional de jogos da antiga SNK (antes de virar esse arremedo, chamado SNK Playmore), e da Konami, Piotr Nikolaievitch Rasputin Campello parte em busca daquilo que nenhum membro da antiga URSS poderia ter - conhecimento do mundo ocidental. Nessa nova vida, que já conta com três décadas de aventuras, Colossus de Cyttorak já aprendeu uma coisa - não se deve misturar Sucrilhos com vodka, nunca!!!!

Este post tem 6 comentários

  1. JJota

    Primeira visão favorável deste filme. Confesso que não gostei dos trailers e, sinceramente, achei Distrito 9 mais ou menos. Mas já estou tentado a down… assistir este filme!

    1. Bom, se você achou Distrito 9 mais ou menos, tenho minhas dúvidas de que venha a gostar desse. Mas downloadeie ele, pelo menos. Veja se vale a pena, faça um test drive… hehe

    1. Engraçado que o povo enche a boca pra falar bem de cada merda que se vê por aí… Por isso que, de maneira geral, não levo crítica a sério…. hehehe

  2. Luciana

    Ainda não vi. Verei neste fim de semana. Gostei de Distrito 9…

    Mas…
    hei, JJota

    O que acontece com seus amigos do BdE?? Deixei um comentário lá e eles simplesmente acreditaram que eu sou fake de um HOMEM??
    Pois é… outro dia comentei aqui mesmo que ainda reina a ideia cretina que quadrinhos e outras nerdices são assuntos exclusivamente masculinos…
    Triste é imaginar que num blog onde, em princípio, tem pessoas mais “cabeça” (tirando os adolescentes espinhentos que por lá comentam), isso não ocorreria…
    tsc…
    bjkas

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