Iluminamos: Saint Young Men (mangá) – quem disse que com religião não se brinca?!

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 saint-young-men (1)Como já comentei por aqui, creio eu, um dos conceitos mais interessantes que existem nas ciências humanas e sociais de maneira geral é a ideia do “intraduzível”. Recorrendo a diferentes tradições filosóficas das mais diversas áreas do conhecimento é possível encontrar, em algum ponto, a ideia de que determinado termo, conceito ou noção, uma vez que pertença a um determinado domínio, campo, ou manifestação, não poderá ser transposto em sua inteireza para outro. Isso é válido para palavras em diferentes línguas (como supostamente seria o caso da “nossa” saudade em outros idiomas), diferentes sensações em diferentes culturas (pode ser dizer que o luto é experimentado de formas diversas dentro de culturas diversas, por exemplo), assim como conceitos abstratos dentro daquilo que se entende por pensamento científico (como o conceito de representação, que tem um sentido para Sociologia, outro pra Filosofia, outro pra Psicologia etc etc etc.).

Por sua vez, um caso bem prático onde esse fenômeno pode ser observado seria o humor ou a comicidade. Além da questão mais óbvia do contexto cultural (ou você acha que em todos os países do mundo o português é considerado burro, o mineiro ‘come-quieto’ ou o carioca malandro?), há também a própria concepção do que é considerado engraçado num país ou cultura, o que não necessariamente passa por saber de algum dado histórico ou social, mas apenas por entender certa conotação ou “sentir” (ter um feeling sobre) determinada situação. Resumindo, o processamento neuroquímico-biológico-cultural que faz alguém rir pode ser bastante complexo. No Iluminerds, quem tratou muito bem de algumas dessas questões foi nosso estimado Colossus de Cyttorak com sua épica análise sobre o humorístico estadunidense Saturday Night Live.

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Desta forma, continuando uma tradição analítica do site, por assim dizer, e aproveitando o espírito do feriado que passou, seria propício apresentar um mangá que fica no limiar da questão do “intraduzível” e ao mesmo tempo, para aqueles que ousam “decifrá-lo” (e esse é um pouco o papel desta crítica), pode se tornar uma das experiências de leitura mais prazerosas no campo do humor. Em Saint Young Men ou Saint Onii-San (os Jovens Santos, em tradução livre), de 2007, Jesus Cristo e o Buda Sidarta Gautama reencarnados dividem um apartamento na Terra, mais precisamente em Tóquio, nos dias atuais. Neste contexto, eles passam por situações corriqueiras da vida humana numa grande metrópole, o que geralmente ocasiona grandes confusões e/ou constrangimento. Um prato cheio para piadas de humor negro – devido às sensibilidades religiosas que poderiam se sentir ofendidas, talvez –, comédia de costumes, sátiras e até alguma crítica social, que são magistralmente trabalhadas pela autora Hikaru Nakamura.

Por conta de sua estrutura episódica, Saint Young Men não possui uma narrativa central, e cada capítulo traz uma história fechada em si. Neles, os personagens se veem às voltas ou, quando muito, decidem investigar por conta própria algum atributo da vida mortal ou mais especificamente da cultura japonesa. Na verdade, todo o mangá se baseia numa premissa bastante simples, Jesus e Buda decidem passar férias no mundo humano e, tal qual turistas – e no melhor estilo do turismo estudantil –, eles saem pra fazer compras, visitar pontos turísticos e tentar experimentar ao máximo uma “vida normal”, tudo isso com um orçamento curto.

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No entanto, ao invés de ridicularizar os personagens ou as crenças budistas e cristãs, a autora optou por uma comicidade mais refinada, longe do besteirol ou do escracho. Isso sem demonstrar também uma reverência excessiva por um ou por outro, mostrando que ela não teme brincar um pouco com o imaginário que cerca essas divindades. Nakamura criou personalidades bem divertidas para os dois, que são justamente o que faz com que eles entrem nas situações cômicas. Ela brinca com os estereótipos recorrentes dos mangás, mesclando-os com o histórico das duas divindades.

Jesus, por exemplo, faz o tipo desligado (ou burrinho mesmo) com sérias tendências consumistas que precisa o tempo todo ser refreado por Buda, lembrando que ele é um símbolo do “Ocidente materialista” que perde bastante espaço no Japão dividido entre o xintoísmo e o budismo e que sua filosofia do perdão pode ser a influencia por trás de ser visto como “inocente”. Enquanto isso, o Buda de Nakamura seria o mais responsável, o cérebro da dupla, sempre preocupado com as contas e em “manter Jesus na linha”, e é até um pouco sovina, o que por sua vez remete a rotina de austeridade e disciplina que o ex-príncipe levou até atingir a Iluminação.

Em certos momentos, eles também apresentam a mesma dinâmica de um casal, o que é usado de maneira explicita (como forma de piada na trama) e também implícita (já como “bônus” para os leitores desvendarem e/ou interpretarem). Quem conhece um pouco de mangás e, sobretudo, acompanha o gênero yaoi, poderia dizer que os dois incorporam, propositalmente ou não, o estilo uke (passivo) e seme (ativo) presente nos casais homossexuais da temática. Outros, no entanto, poderiam afirmar que as características andróginas ou metrossexuais de ambos tenham mais uma ligação com a maneira que a assexualidade dos “santos” seria interpretada nos dias atuais.

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No Japão, como não é visto como uma celebração religiosa, o natal é visto como uma data romântica

Tendo um material tão vasto como fonte de inspiração, é possível tirar proveito do enredo para proporcionar diversas ocasiões hilariantes.  Por exemplo, animais a todo tempo buscam se sacrificar por eles: seja se oferecendo como alimento e se jogando em panelas ou trazendo fósforos ou óleo em seus bicos e patas, como transporte ou apenas seguindo os personagens onde quer que eles estejam. Ainda na ceara religiosa, sempre que alguns dos dois passam por emoções fortes, as marcas de sua santidade começam a aparecer, ou seja, eles começam “a dar pinta”, estragando seu disfarce de meros mortais. Jesus tem medo d’água e suas chagas começam a sangrar sempre que ele tem que entrar na piscina ou num barco. Na história, ele chega a dividir a água da piscina com medo de se afogar no raso e a andar sobre as águas de um lago após ficar enjoado num pedalinho. Já Buda sempre que é contrariado por Jesus numa questão financeira ou faz algum tipo de sacrifício ou ação altruísta começa a brilhar intensamente, representando sua iluminação.

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Por causa do cabelo comprido, sinal de rebeldia no país, Jesus é confundido com um membro da Yakuza e fica amigo deles. Em outra história, por conta de suas feições ocidentais e da barbicha ele é confundido com o ator Johnny Depp por algumas estudantes do colegial e depois passa a ser fã do ator por causa do ocorrido. Aliás, ambos têm um interesse grande em cultura pop e geralmente fazem comentários a respeito de celebridades, músicas, filmes e mangás de que gostam. Buda inclusive é um grande fã de Ozamu Tezuka, justamente por causa do mangá sobre sua vida – uma das obras máximas do autor e um clássico da arte sequencial japonesa – o que o faz querer desenhar e ser também um mangaká. Ele inclusive publica seu próprio mangá no reino dos céus satirizando a vida no Paraíso o que faz um sucesso imediato entre as demais divindades.

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Mesmo para uma jovem autora (nascida em 1984, ela tem 29 anos), o talento de Hikaru Nakamura pode ser comparável ao de grandes nomes da comédia do lado ocidental do globo, como o escritor Douglas Adams. Seu outro trabalho, Arakawa under the Bridge (Arakawa sob a ponte), de 2004, sobre um jovem executivo que passa a morar com (e servir a) uma colônia de mendigos ao ser salvo de se afogar por uma (bela) jovem que mora debaixo da ponte, que também mistura humor nonsense com crítica social, é outro exemplo de narrativa promissora que, se bem traduzida, poderia fazer sucesso no mundo todo. Saint Young Men, por exemplo, foi indicada a melhor história em quadrinhos no prestigiado Festival de Angoulême, na França, e já possui traduções em chinês, italiano, espanhol, além do próprio francês. Curiosamente o mangá ainda não está no aquecido mercado norte-americano de quadrinhos, segundo a própria autora, por causa da controvérsia que o tema poderia gerar em meio ao (tacanho) público americano. E, no Brasil, como seria?

Serviço

Saint Young Men ainda está em publicação no Japão, seus capítulos são lançados mensalmente na revista Morning 2 da editora Kodansha, e desde seu lançamento, em 2007, já saíram oito volumes encadernados (tankobon) com a história. Eles renderam ainda dois OVAs e uma longa de animação ambos de 2013

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Quando Buda lhe pergunta o que o Natal representa, essa é a resposta que Jesus dá

Uma boa notícia é que o mangá pode ser encontrado EM PORTUGUÊS pela internet, a tradução é feita pelo pessoal do Pururin Scans e eles estão no capítulo 20. O mesmo vale pros OVAs que estão disponíveis pelo Anitube da Uol. Para quem souber inglês, o mangá está mais adiantado, com 31 volumes feitos pelo grupo de scanlators S2Scans até o momento.

Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

Este post tem 3 comentários

  1. Ótimo post, Zé!!! Muito boa, a premissa desse Mangá, e obrigado pela referência direta aos posts que eu escrevi! Faz pensar que não foi tudo em vão… Abração!

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