Iluminamos: THE BOYS 2 e a paixão (sim, isso mesmo!) de Ennis pelos super-heróis

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Detesto rótulos. Odeio quando alguém deixa de ser conhecido por si e passa a ser chamado de coisas como “o polêmico”, “o louco”, “o salvador de franquias”, “o velho rabugento que só gosta de coisas dos anos 80” e… Bom, eu odeio rótulos tanto quanto odeio fórmulas prontas que devem ser seguidas à risca e reinterpretações bufas ou saudosistas que destroem anos de “amadurecimento” de algum personagem.

“Esse aí? AIDS em estágio avançado. Ele sabia disso, não se cuidou e infectou, pelo menos, três garotas que conheço. Então, cortei o pau dele fora e, até hoje, o salvador da Cozinha do Inferno tem de mijar sentado…” – Carniceiro –

Rotular é limitar. Pessoas deixam de conhecer obras porque se prendem aos rótulos dados a seus autores. Garth Ennis é um exemplo disso.

Duas coisas escuto sempre sobre ele. A primeira, que é um escroto. Suas histórias sempre incluem algum elemento feito para revirar estômagos, e não estou falando de estômagos sensíveis. A outra é que ele odeia super-heróis. Acho a primeira informação incompleta. Acho a segunda incorreta.

“Os filhos da puta que matei desde que entrei neste grupo? Eu sei muito bem que o mundo é um lugar melhor sem esses escrotos por perto para poluir o ambiente. Fico feliz de ter mandado para a cova cada um dos desgraçados. Só me arrependo de não ter tido a chance de matá-los duas vezes.” – Leite Materno –

O mesmo homem que cria cenas grotescas de decapitações e enforcamentos (às vezes utilizando como “arma” as próprias tripas da vítima) também constrói um romance como o de Jesse Custer e Tulipa (casal protagonista de Preacher), que é bonito sem ser piegas ou condescendente. O mesmo escritor que faz o Justiceiro usar o Homem-Aranha como escudo contra o Russo, também se tornou uma das poucas vozes entre os artistas influentes deste século a criticar abertamente a forma como Marvel e DC vêm tratando seus personagens nos últimos anos, deixando de lado questões como “qualidade” ou “profundidade” em nome de um gráfico de vendas que seja alto, embora de forma efêmera.

“A cabeça da tartaruga tá saindo do casco… MALDITOS BURRITOS!” –Hughie Mijão –

É até engraçado especular que Ennis, na verdade, gosta de super-heróis quando estou aqui resenhando um encadernado de The Boys. Afinal, não há aqui um único super que fique dentro de padrões aceitáveis: são alcoólatras, drogados, irresponsáveis, assassinos, gananciosos, pervertidos… ou incrivelmente ingênuos, do tipo que não percebem o mundo que os cerca até serem confrontados por ele. Mas o esmero com que ele cria este universo, a inclusão de tantas minúcias que só podem ser percebidas por leitores assíduos… Sinceramente, não conheço ninguém que estude profundamente algo que odeie, a não ser que o faça apaixonadamente. E odiar desta forma é tão intenso quanto o amor mais descarado.

Desde Watchmen, a ideia de “como seria o mundo se os super-heróis realmente existissem” vem sendo trabalhada de vez em quando. E, tirando a obra de Alan Moore, acho que se existe algo que mereça ser encadernado e colocado em uma estante com lugar de destaque ao seu lado é justamente The Boys.  Considero-a mais bem desenvolvida que o Poder Supremo de J. M. Straczynski (excessivamente discípulo de Stan Lee pro meu gosto) e mais interessante que Astro City, de Kurt Busiek.

“Talvez o Lenda e você sejam mais parecidos do que você pensa: mas ele não quer admitir isso, então usa palavras cruéis pra tentar disfarçar. Por outro lado, ele pode ser apenas um grande canalha que gosta de torturar ‘supers’. Vai saber…” – Carniceiro –

Para os hereges que não acompanharam o primeiro volume, neste mundo os heróis não só existem como são, em sua imensa maioria, “supers” mesmo, obtendo poderes direta (aplicação na veia!) ou indiretamente (não me peçam pra explicar implicações genéticas derivadas do uso de drogas: deve haver algum membro aqui no blog mais “capacitado” pra explicar este tipo de coisa), através de um tal Composto V.

Estes “heróis” são celebridades. Como tais, vivem da venda de imagens que são delineadas para a opinião pública por competentes marketeiros. Também como as celebridades do mundo real, eles raramente correspondem, ainda que minimamente, a estas figuras projetadas. Na verdade, agem como se suas habilidades lhes conferisse inimputabilidade.

“Nada mais funciona direito. Tudo que é mecânico enguiça. As pessoas… se corrompem. A polícia é inútil, os políticos, idem. Ninguém ajuda ninguém… Isso é de partir o coração.” – Salsicha do Amor –

Tal comportamento causa desconforto nos governos, principalmente no americano (diferente das obras de Moore e Straczynski, aqui o governo americano não detém poder sobre os poderosos, que são subordinados, em sua imensa maioria, ao Conglomerado – uma empresa privada que demonstra ter grande apetite pelo poder). Por isso, a CIA se associa a um grupo de pessoas que se dedicam a vigiar, controlar (se preciso) e até eliminar (com uma certa dose de prazer) aqueles que extrapolam certos limites. Este grupo, aparentemente, havia se afastado do jogo depois de uma espécie de trégua, mas retorna, com uma formação que inclui Carniceiro (que tem um ódio doentio pelos supers), Leite Materno (ex-militar, é o líder do grupo ao lado do Carniceiro, quase sempre controlando os excessos deste), O Francês (completamente maluco, um rastreador nato, verborrágico e sem piedade), A Mulher (extremamente poderosa, muda, intocável e incrivelmente sádica) e Hughie Mijão (o ainda relutante novo membro).

“Quer ver o quanto você é espertinho, tentando chamar uma ambulância com as suas mãos segurando as próprias tripas?” – Nina Namenko –

Neste segundo encadernado, Garth Ennis mais uma vez prova que é um mestre do ritmo e dá uma pausa em algumas das tramas principais apresentadas no primeiro volume (como a tensão entre Carniceiro e Patriota, aparente líder dos Sete – a versão desta realidade para a Liga da Justiça) e dá um tempo, mostrando uma história de detetive (claro que nela está envolvida o “Batman” theboysiano!) e uma pequena aventura internacional. Pequenas pontas, que deverão ser atadas em algum ponto no futuro, vão sendo soltas aqui e ali.

No primeiro arco, Mandando Ver, vemos Carniceiro e Hughie Mijão investigando o assassinato de um jovem homossexual a pedido do Lenda (uma mistura de todos o grandes editores de HQs da Marvel e da DC – claro que quando digo “dos grandes” estou excluindo coisas como Joe Quesada, Bob Harras e Dan Didio – que tinha sido responsável pela linha de gibis que apresentava os heróis como exemplos máximos de virtude, sendo fonte de informação confiável sobre eles). O principal suspeito é Suruba, ex-parceiro do Tecnoman (uma mistura de Batman com Homem de Ferro), que encontra-se em um momento conturbado da carreira, sofrendo de uma crise aguda de tesão excessivo e incontrolável (em outras palavras, ele não consegue ver um buraco, seja o escapamento do tecnomóvel, seja o da chinchila de sua sobrinha).

“Eu gostaria de costurar seus bagos na barriga, se usar esse tom comigo.” – Nina Namenko –

No segundo arco, O Glorioso Plano de Cinco Anos, a equipe completa viaja para a Rússia, onde, ao lado de um antigo super-herói proletário, o Salsicha do Amor (não, eu estou falando sério), investigam bizarros incidentes ocorridos com alguns super-seres que,  literalmente, explodiram em público. O envolvimento da máfia russa, comandada pela “grande” Nina, e do Conglomerado expõe um plano extremo que mostra aos Rapazes que as apostas estão subindo vertiginosamente. O líder estourado do grupo, em sua última ação, mostra que também não está muito interessado em continuar “pegando leve”. Mesmo assim, o a empresa consegue amedrontar a CIA, para profundo desgosto do Carniceiro.

O desenhista Darick Robertson (TransmetropolitanJusticeiro: Nascido Para Matar, Wolverine) mais uma vez consegue fazer seu traço casar perfeitamente com a proposta do roteirista. Tanto que considero o ponto baixo do encadernado a participação de Peter Snejberg nos desenhos.  Não que ele seja ruim, mas cada página não desenhada por Darick (todas cheias de incríveis referências, como, por exemplo, aparentes versões de personagens de um destes blogs cheios de Mais do Mesmo) torna-se, apenas por isso, menos impactante.

“Peitões são meu ponto fraco.” – Salsicha do Amor

O encadernado da Devir possui aquele papel legal de tocar e não está tão caro como outras coisa lançadas pela Editora. Mas é completamente despido de extras. Uma pena.

Enfim, que venham outros encadernados (lembrando que os autores anunciaram que a série terminará no número 72) e as séries derivadas. E, para fugir de outro rótulo: se você é fã de super-heróis (como eu, embora esteja simplesmente desiludido com a fase atual tanto da Marvel como da DC), não seja bobo de achar que ficará ofendido com a forma como Garth Ennis e Darick Robertson os retratam aqui. Como afirmei acima, você se divertirá muito vendo todas as “coincidências” entre este universo e os da Marvel e DC. Bobo é quem acha que Garth Ennis trabalha com ódio e tenta vender a imagem de que fãs de super-herói são bobos e ler The Boys faz você ser fodão. Ele se diverte. E nos diverte no processo.

The Boys – Volume dois – Mandando Ver – Roteiro de Garth Ennis – Arte de Darick Robertson e Peter Snejberg – Arte-final adicional de Rodney Ramos – Editora original: Dynamite (edições 7 a 14 do título The Boys) – Editora nacional: Devir – 192 páginas – R$ 39,90

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 18 comentários

  1. Inacreditavel_Neo

    Ei cara, sabe o 1º encadernado de The Boys que tu me emprestou? Pois é, aconteceu um pequeno “acidente”…

    1. JJota

      Eu, sinceramente, espero que você esteja brincando. Caso contrário, pretendo me inspirar justamente em Garth Ennis e fazer alguns acidentes com a sua pessoa.

      1. Inacreditavel_Neo

         Bem, então acho que tu tá preparado pra saber o que aconteceu com V de Vingança.

  2. Victor Vaughan

    Garth Ennis é DEUS!!! Muito boa matéria, Jota Jota! Seja muito bem vindo ao Iluminerds, foi Inacreditável o bom gosto na escolha do primeiro tema! Salve!!!!

    1. JJota

      Opa, valeu, VVV. É sempre bom começar bem, ó, Wolverine dos blogs!

  3. Evandro Loco

    Ótimo texto JJota, The Boys é muito foda, assim como garth Ennis, estou pensando em incluir os dois volumes na minha próxima compra de Hqs!

    1. JJota

      Cara, considerei um dinheiro muito bem investido. Apesar da pobreza de extras no primeiro volume e a completa ausência dos mesmos no segundo, o principal está lá e, acredite, ainda vem coisa muito melhor por aí!

      1. Rosinha

        O Victor vence por 3 blogs a mais (Santuário, BdE, MRZI, Iluminerds).

          1. Rosinha

            Verdade. Corrigido.

  4. Rodrigo Sava

    JJota, pelo que parece, o Ennis, junto com Mark Millar e Warren Ellis, é o escritor mainstream atual que mais experimenta com superpoderes. Li umas doze edições da série, e agora pretendo continuar com as demais. Ah, e gostei das imagens com as citações. Abç.

    1. JJota

      É por aí mesmo. Ennis segue o caminho inaugurado pelo Alan Moore (que desromantizou os super-heróis) e seguido por vários outros artistas, inclusive Warren Ellis e Mark Millar, quando trabalharam com Authority. Como acho Ennis melhor escritor (acho, por exemplo, a primeira edição de Preacher o “exemplo de n° 1” máximo pra quem quer ser escritor de HQ), tendo mesmo a achar suas histórias melhores, ainda que ele apenas esteja mais uma vez reciclando conceitos já explorados por outros autores. 

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