Fala galera que curte máfia e, assim como eu, já disse que Mário Puzo era sua principal referência. Hoje, trago uma resenha muito especial, principalmente, por tratar-se de meu principal tema de pesquisa, o crime organizado. É com imenso prazer que lhes apresento Gomorra, de Roberto Saviano. Publicado na Itália, em 2006, o livro já vendeu mais de um milhão de cópias em 40 países. Além disso, deu origem ao filme “Gomorra”, vencedor do Grande Prêmio do Festival de Cannes em 2008.
De início, deixarei uma breve sinopse por aqui, para, assim, poupar-me de esmiuçar muito os detalhes da obra, visto que a surpresa se faz um de seus principais predicados:
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que cheguei ao livro anos depois de ter assistido o filme, já que mesmo sendo instigante a abordagem da premiada adaptação cinematográfica, não conseguiu despertar meu pleno interesse, visto que suas passagens eram muito rápidas e pouco explicativas, o que, por um lado, também acabou me fazendo deixar a obra original no esquecimento. Contudo, alguns anos se passaram e na gana de estudar com afinco a origem do crime organizado, em especial, a correlação de forças entre a classe dominante e a oprimida, eis que tive a tardia ideia de buscar o original de Saviano e, para a minha felicidade, coloco-o como um dos melhores relatos que li em minha vida.
Como visto na sinopse acima, diferente do tipo de literatura abordada por Mário Puzo, Saviano nos traz um banho de realidade em delicadas palavras. Permeada de analogias e metáforas, a narrativa, em certos momentos, faz com que o leitor sinta literalmente o cenário, principalmente os odores. Ao final, o autor deixa explícito que, a seu ver, a Itália fede a sangue e merda – assim como nossas queridas metrópoles -, o que não é de se espantar, afinal, vivemos um esquema parecidíssimo ao que foi descrito na obra.
Para tal, Saviano aborda temas como a cultura do crime organizado, a naturalização/banalização da violência e a corrupção como estigma insuperável. Isso porque ainda existem diversas dúvidas mesmo na cabeça do leitor mais crítico sobre a máfia, em especial, sobre a evolução e o escamotear da mesma, no entanto, estas e muitas outras questões são rapidamente dizimadas neste singelo enredo que nenhum grande escritor conseguiria criar. O motivo desta minha afirmação? Simples, nada é melhor para a assimilação do que a própria realidade. E mesmo que evitemos, para nosso senso crítico faz-se extremamente necessário este tipo de leitura, pois somente assim chegaremos a compreensão do atual panorama político brasileiro.
Pode parecer exagero, mas o leitor entenderá que, principalmente por diferir das leituras massantes da academia por meio de sua prosa gostosa, será possível dar um passeio impressionante, desde o porto de Nápoles à alta costura do norte, passando também pelo cimento, Hollywood, o lixo, as grandes construtoras, o turismo e, finalmente, política e a religião. Tudo isso descritos a partir de uma sensibilidade ímpar, contrastando de forma genial com a truculência rotineiramente apresentada. Então, caro leitor, aqui veremos mortes, balas estourando crânios, rasgando corpos e latarias, e homens mutilados sendo explodidos no interior de poços em grandes lixões, porém, de maneira teatral, estranhamente suavizando o que para muitos seria insuportável.
Outro fato que me perturbou bastante, – além da violência – , mas na forma positiva, é claro, pois me fez lembrar do Brasil, é que por A + B, Saviano mostra o crime como a ilusão do melhor futuro para uma grande parcela dos jovens, fora de mercado e sem a oportunidade para tentar sair da miséria onde se instalaram e de onde nunca sairão. E a partir desta vida sem futuro, qualquer possibilidade de sobrevivência é visto como ouro, por isso, incutiu-se culturalmente que aqueles que se enveredam pelas leis do crime ganham muito mais do que dinheiro, ganham dignidade. Viram gente. Enfim, nos deparamos com um clássico da vida real. Seco, duro, e que você terá de engolir mesmo com nojo, já que, esmiuçando boa parte do esquema Napolitano, Saviano fala, principalmente, como um cidadão italiano, preocupado com seu país e o futuro de sua nação. E o pior que isso posa lhe parecer , desde o início só processei uma mensagem:
Abra seus olhos. A única diferença é que lá, enquanto o crime organizado é sinônimo de status, em nossa hipocrisia ou evolução criminal tupiniquim, os verdadeiros mafiosos aparecem na tevê com um número de legenda embaixo. Chega a ser hilário, quando conversamos e alguém me diz que isto é uma profecia do Brasil do futuro. Infelizmente, receio que seja o contrário. Nós já evoluímos e nosso bando cresceu ao ponto, de somados, se tornarem ministros, juízes, desembargadores e o que mais se possa imaginar. O pior de tudo é que ao lermos isso, sentimos pena dele, mesmo vivenciando a mesma situação.
Gostariam de curtos exemplos? Para ser gentil usarei apenas notícias da mídia comum, altamente influenciável diante o poder do crime, mas que por temer desmentir o óbvio não tiveram escapatória a não se denunciar.
Por exemplo, quando falamos sobre a coleta e depósito ilegal de lixo no mercado internacional, logo me lembro dos diversos containers recentemente encontrados/descarregados num dos portos brasileiros, expondo que não é uma prática exclusiva da velha bota:
Ou, quando falamos sobre “notas frias, patrocínios falsos, falsos prêmios ou eventos que nunca existiram para a lavagem de dinheiro: a Festa da Mozarela, a Música na Praça…” – pag. 230.
“Tudo começa com uma quadrilha de tipos fora da lei, criminosos, ladrões, corruptos, doleiros, burladores do fisco, mafiosos, mentirosos, traficantes. Se essa quadrilha de criminosos se expande, aumenta em número, toma posse de lugares, de cargos, de ministérios, da presidência de empresas e fica poderosa ao ponto de dominar e intimidar os cidadãos — e estabelecendo suas leis sobre como repartir a corrupção — ela deixa de ser chamada quadrilha e passa a ser chamada de estado. Não por ter-se tornado justa, mas porque aos seus crimes se agregou a impunidade”.
Poderia me estender muito mais e falar de coisas engraçadas, como a interferência de Hollywood que fez com que os filmes de Quentin Tarantino modificassem a forma de segurar a arma dos jovens, de lado ao invés de ereta. assim, fazendo com que perdessem a eficácia. Poderia também falar como fiquei maravilhado com o verdadeiro jornalista que, expondo a própria vida, superou a rotina engessada e robotizada; transformando a informação em debate, e não apenas em algo supostamente imparcial. Porém, como não posso escrever muitas laudas, visto que o público não leria (ocasionando uma lastimável perda da mensagem).
Sendo assim, finalizarei com a mesma frase de Saviano, em particular para os sábios virtuais que frequentemente tentam me desmoralizar, ao rirem do meu interesse sobre a máfia, ou a literatura que escrevo. Sim, existe máfia no Brasil, seja ela italiana, russa, chinesa, coreana ou de qualquer outra nacionalidade, afinal, desde pequenos fomos ensinados que as fronteiras acabaram depois da globalização. E isso vale pro crime organizado também.
” Eles ( os poderosos) minam lentamente, um pouco por dia, até quando você se vê nu e só, acreditando que está combatendo alguma coisa que não existe, que é um delírio da sua cabeça. Você começa a acreditar nas calúnias de que o acusam, como a de que você é um insatisfeito que decide descarregar seus traumas em quem conseguiu alguma coisa na vida” – pag. 268.
Escritor, acadêmico e mafioso nas horas vagas... Nascido no Rio de Janeiro, desde novo tivera contato com a realidade das grandes metrópoles brasileiras, e pelo mesmo motivo, embrenhado no submundo carioca dedica boa parte de seu tempo a explanar tudo que acontece por debaixo dos panos.
