Especial Mario Puzo: O chefão – A traição da Omertà.

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Fala, meu povo! Após as centenas de likes no post passado, eis que adianto a apresentação da matéria sobre O Chefão, um dos principais livros de literatura policial e o, certamente, hors concours do sub-gênero máfia! Esta matéria intitulada de Especial Mario Puzo: O chefão – A traição de Omertà foi desenvolvida pelo colaborador Ricardo Labuto Godim, um dos proeminentes escritores de nossa safra atual.

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Um exercício intelectual burlesco é a elaboração de “termos absolutos” para questões subjetivas. Como o fatigado bordão que previne, sem conhecimento de causa, que “o livro sempre é melhor que o filme”. Como assim, meu anjo? Que livro? Que filme?

O termo primário de comparação entre livro e filme é o arco da história. O livro é uma expressão literária. A linguagem cinematográfica é audiovisual. Se o conceito de obra-prima é o da arte que atingiu sua expressão máxima, literatura e cinema têm virtudes distintas. Filmar Os Irmãos Karamazov seria um exercício de inutilidade. O cinema nada tem a acrescentar ao texto. Como disse Hitchcock, “há palavras demais ali e cada uma tem sua função”. 2001, Uma Odisseia no espaço gerou um livro muito bom – que empalidece diante do filme. Nem todos os livros são densos. Nem todo filme é superficial. Quando falamos de O Chefão, a discussão é inevitável. O livro é sensacional. Os filmes também são.

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Fundamentalmente, os dois primeiros episódios da trilogia de Coppola estão no livro. No primeiro, houve a simplificação da história, que não perdeu o vigor. No segundo, o aprofundamento. Ambos testificam a maestria de Coppola como cineasta e a de Mario Puzo como roteirista (O terceiro episódio é uma história original que altera eventos do livro, de modo que não vamos discuti-lo aqui).

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A maioria dos espectadores ignora, mas os flashbacks do primeiro filme pertencem ao livro. A arrebatadora montagem paralela do final também. A estrutura, atribuída à genialidade de Coppola, é mérito da genialidade questionada de Puzo.

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Como assim “questionada”? Ao longo de suas carreiras, Puzo e Coppola correram grandes riscos. Em termos criativos, os riscos da literatura são maiores. O livro é a obra de um autor solitário. O filme é o resultado da colaboração de centenas de profissionais. Nem todos os livros de Puzo têm a qualidade de O Chefão. Mas, sem ele, não haverá o quarto episódio. Coppola afirmou textualmente ser “impossível” fazê-lo sem Puzo, morto em 1999.

Simbolicamente, Mario Puzo quebrou a omertà, a lei do silêncio, para exaltá-la. O que permaneceu em segredo foi enterrado com ele.

O tema essencial da história é a vontade de poder. Homens simples, insubmissos, recusam as traições do Estado, da política, da sociedade e – acima de tudo – o domínio dos outros homens.  Para assegurar essa independência, escudam-se no poder econômico. Para obtê-lo, praticam crimes. Para mantê-lo, cometem assassinatos.

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Nada é pessoal. Tudo é uma questão de negócio. Ao contrário da ensanguentada Chicago, a máfia de Nova Iorque raramente fazia vítimas “civis”. Essa era a noção de “crime organizado”.

Em Chicago, Al Capone, um psicopata convencional aperfeiçoado pela sífilis, conseguiu a proeza de ser preso. Foi aniquilado por Eliot Ness, um burocrata honesto, que, no mundo real, jamais tocou em uma arma e nunca esteve frente a frente com Capone. A questão é relevante. Demonstra que mafiosos históricos como Capone, Bugsy Siegel e Lucky Luciano – idealizados e romantizados pelo cinema como o próprio Ness – se notabilizaram pela vaidade, uma forma não compulsória de estupidez. Para dissecar essas variedades morais bizarras e primitivas, Puzo estabelece as tensões e conflitos no primeiro capítulo do livro. Utiliza um recurso simples, econômico e, por isso mesmo, brilhante: a festa de casamento em que expõe os personagens e os elementos do drama.

O despojamento fluído da linguagem narrativa – que o leitor precipitado ou o crítico obtuso poderiam confundir com imperícia – é um recurso literário.  Puzo contrapõe a simplicidade do texto à elaborada construção dos diálogos. Por contraste, ainda que converse com o leitor, o autor se dilui em segundo plano – enquanto conceitos e personagens conquistam um relevo admirável.

Exemplificando: na festa de casamento, um agente funerário que rejeitou a amizade do chefão Don Corleone lhe pede um favor. Sua filha foi molestada e espancada por jovens ricos, de famílias influentes, absolvidos pela Justiça. Sim, como no Brasil. Agora, o pai abatido implora vingança. Don Corleone diz:

Se você tivesse vindo pedir-me justiça, essa escória que desgraçou sua filha estaria chorando lágrimas de amargura. Se, por infelicidade, um homem honesto como você fizesse inimigos, eles se tornariam meus inimigos. E então, acredite em mim, eles teriam medo de você.

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Michael Corleone, herdeiro da genialidade do Don, o jovem que sonhava escapar à tradição da família, sofre uma tragédia pessoal e resolve toda a sua problemática em uma frase: Diga ao meu pai que eu quero ser filho dele.

Em termos sociais, o tema mais relevante do livro é a visão de Don Corleone de que o dinheiro do tráfico de drogas não representaria o aperfeiçoamento do negócio, mas sua decadência. O fim da tradição baseada no senso de honra pessoal em harmonia com a corrupção inerente ao Estado. Em seu entendimento, as drogas eram uma infâmia que tornariam o negócio incontrolável. Logo, o Don se tornou obsoleto. É um homem de princípios rígidos que, se não forem quebrados, destruirão a família. Ele precisa transferir o Poder.

A ascensão das drogas foi a elevação dos carniceiros. O crime organizado e a própria sociedade foram desordenados pelo tráfico. A máfia retratada por Puzo não existe mais.  Daí o toque genial dos roteiristas de Família Soprano, sucesso da HBO. Na série, os personagens reveem permanentemente o filme de Coppola para entenderem os valores daquela tradição perdida – historiada por Mario Puzo. Haveria muito mais a dizer, mas nem todo mundo conhece o livro e os filmes. Como Don Corleone, sou um homem de valores antiquados. Não vou quebrar a omertà.

Ricardo Labuto Gondim é roteirista e escritor. Autor de Deus no Labirinto (contos) e B (romance policial) publicados pela Editora Baluarte. Atualmente está trabalhando em seu terceiro livro, uma obra de ficção científica. Se revelasse o tema, teria de matá-lo ou matá-la. Nada pessoal, apenas negócios. 

Colaborador

Colaborador não é uma pessoa, mas uma ideia. Expandindo essa ideia, expandimos o domínio nerd por todo o cosmos. O Colaborador é a figura máxima dos Iluminerds - é o novo membro (ui) que poderá se juntar nalgum dia... Ou quando os aliens pararem com essa zoeira de decorar plantações ou quando o Obama soltar o vírus zumbi no mundo...

Este post tem 3 comentários

  1. Marcelo Carneiro

    Maravilhoso texto. Li o livro, vi e revi a trilogia, e concordo com tudo. E a sacada final sobre Os Sopranos é genial. Na verdade, ali está o legado de Puzo e Coppola.
    Marcelo Carneiro

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