Depois de vermos (aqui) o difícil início da carreira de Frank Miller e como ele chegou ao seu primeiro título como desenhista, chegou a hora de acompanharmos o início do mito.
Dennis O’Neil, depois de conversar longamente com Frank e ouvir suas ideias para o Demolidor, entregou os roteiros para ele. Não era uma loucura: o título continuava com baixas vendagens, bimestral e próximo do cancelamento. Na verdade, era a última tentativa de salvá-lo. Tivesse Miller fracassado, o título – e, talvez, o próprio personagem – teria sumido.
E foi um sucesso. Mas quais os motivos que levaram a esta reviravolta?
Em primeiro lugar, Miller aproveitou a oportunidade pra amadurecer o gênero. Como dito antes, ele tinha planos de trabalhar com quadrinhos policiais, mas imposições mercadológicas o fizeram ir para os de super-herói. No Demolidor, ele encontrou o ambiente perfeito pra unir as duas coisas. Como já vinha preparando o “cenário” (ou seja, fazendo uma New York cada vez mais suja e sombria), ele não teve problemas de levar as temáticas abordadas na mesma direção.
Ele desenvolveu o Demolidor à margem do resto do Universo Marvel. A grande maioria dos super-heróis foram simplesmente ignorados. Outros, como Luke Cage e o Punho de Ferro, foram levemente ridicularizados. Os vilões poderosos ou high-tech seguiriam o mesmo caminho. Na imaginação de Frank, um sujeito como o Demolidor, que não possui força física sobre-humana, não dispara raios ou usa armadura, jamais poderia interagir com – nem, principalmente, antagonizar – seres fantásticos. Personagens como Nick Fury e a Viúva Negra foram tratados de forma bem mais de acordo com o status quo que exibiam dentro do panteão de personagens da editora.
Matt Murdock, o alter-ego do Demolidor, ganhou densidade. As aventuras eram intercaladas entre suas rondas uniformizado pela Cozinha do Inferno e sua atuação “civil” nos tribunais, no escritório de advocacia e até em sua própria casa. Também foram exploradas suas desventuras amorosas e algumas revelações sobre o seu passado.
Ao mesmo tempo, entrávamos em contato com uma grande variedade de personagens coadjuvantes, entre eles o hilário sócio Foggy Nelson e o azarado bandido Tucão. Destacaram-se também Heather Glenn, namorada de Matt, e Josie, dona do bar onde o Demolidor gostava de “colher informações”, além do mestre do jovem Matt – Stick –, seus Virtuosos e os principais inimigos destes, o clã ninja assassino conhecido como Tentáculo.
E, claro, Elektra.
A assassina surgiu já na edição de estréia de Miller como roteirista titular. Mestre precoce da arte do enredo, ele desenvolveu de maneira perfeita o relacionamento conflituoso entre os personagens. Mesmo tendo suas vidas separadas por anos de ausência e pelo abismo entre suas “carreiras secretas” (Matt é um super-herói, Elektra uma assassina de aluguel), ambos descobrem que se amam profundamente. Trabalhando muito bem o ritmo, Miller sumiu com a personagem por edições inteiras, trazendo-a novamente à tona quando os fãs já estavam quase urrando. E ousou ao limite: matou a personagem em seu auge.
Tudo isso, somado às óbvias influências que desfilavam a cada página (sendo a mais destacada a de Will Eisner) fizeram com que tudo funcionasse quase à perfeição. O único porém, na minha opinião, é que, desde que o título voltou a ser mensal, Miller foi aos poucos deixando a arte mais e mais nas mãos de Klaus Janson. Sou fã da arte-final do alemão, mas, sinceramente, o acho até hoje um desenhista bem meia-boca.
Como tudo, de bom ou de ruim, tem que terminar um dia, Miler se afastou de forma abrupta do título no começo de 1983. Aparentemente, ele foi ficando cada vez mais e mais aborrecido com o que considerava falta de apoio da Marvel na sua luta contra a censura imposta pelo Comics Code Authority, que estava vetando suas histórias não pela violência, mas pelos temas abordados.
Miller se despediu do título na edição 191, com uma história arte-finalizada por Terry Austin intitulada Roleta-Russa. Nela, o herói “conversa” com o imobilizado Mercenário enquanto disputam o arriscado jogo do título. O texto é simplesmente extraordinário:
Oficialmente, Miller afirmou que apenas não tinha mais o que fazer com o personagem. O que se revelou uma mentira (ou um equívoco), já que ficou faltando ele contar apenas a maior história com o personagem de todos os tempos: A Queda de Murdock (ou Born Again, no original – sempre achei esta tradução brasileira muito escrota!). Como este trabalho foi abordado por mim neste post aqui, ó! não me deterei mais sobre o assunto nesta série.
Ainda com o personagem, é bom lembrar de Demolidor – Amor e Guerra, história centrada no Rei do Crime que, de certa forma, liga a primeira e a segunda fase de Miller no título do herói cego, mostrando o motivo pelo qual Wilson Fisk passa a odiar tanto o herói.
Vamos recapitular rapidamente alguns outros trabalhos de Miller na primeira metade dos anos 80.
Em 1982, foi lançada nos EUA a minissérie Wolverine, que surgiu de um bate-papo entre Chris Claremont e Frank Miller, em que discutiram o que seria a essência de um personagem como Logan. Miller não demonstrou interesse algum até Claremont dizer que o via como um “samurai defeituoso”. Daí por diante, e por horas, eles trocaram ideias sobre como dar profundidade a um personagem sem passado ou memória. Miller, além de todos os pitacos, aceitou desenhar a história, contando com a arte-final de Josef Rubinstein. Ele aproveitou para, de certa forma, também redefinir visualmente o personagem, embora não tenha mudado seu uniforme marrom.
Entre 1983 e 1984, Miller dedicou-se a publicar o seu primeiro “trabalho de autor”: a minissérie em seis partes Ronin. Roteirizada, desenhada e arte-finalizada por ele (com cores de sua então esposa Lynn Varley), terminou sendo publicada pela DC Comics. Assim, Miller e editora “testaram” o mercado norte-americano para HQs “diferentes”, com temática mais adulta, texto e desenhos mais elaborados e um formato mais luxuoso.
Ronin também foi assunto de um post escrito por mim e publicado aqui pelos meus amigos do Baile dos Enxutos.
Entre 1986 e 1987, Miller e Sienkiewicz voltariam a trabalhar juntos na série Elektra Assassina. Uma história ácida, com severas críticas aos Estados Unidos e sua política de intervenção. Sienkiewicz foi encorajado a ousar mais e mais na arte – assim como em Demolidor – Amor e Guerra, ele usa principalmente aquarela – inserindo colagens, fotografia e tudo mais o que tivesse nas mãos. O enredo, que parece simples, coloca a ninja enfrentando o líder supremo do Tentáculo, a Besta.
A Queda de Murdock, Demolidor – Amor e Guerra, Elektra Assassina… O ano de 1986 foi mesmo movimentado (e rico!) para Frank Miller, não?
Opa! Peraí, JJota!!! 1986? Você não está esquecendo nada, não???
Esquecer, não esqueci. Mas isso vai ficar pra próxima parte…
Até.
Belo texto. A Queda de Murdock continua sendo a melhor HQ que já li.
Está entre as melhores coisas que já vi na minha vida.
Como sempre, ótimo post, Jota. A Queda também é uma das melhores HQs que já li… Me lembro de, garoto, lendo essa revista umas 200 vezes. A estocada do Mercenário na Elektra me causou um verdadeiro susto. A composição das páginas era perfeita, e deixaram a cena em que ele fura a Elektra em um quadro isolado, sendo necessário virar a página para lê-la. Genial.
Cara, eu pirava com aquelas composições do Miller. Engraçado é que nessas cenas da morte da Elektra se pode ter um vislumbre dos caminhos que seriam seguidos posteriormente pelo Miller na arte dele.
Com certeza. Principalmente a narrativa dele, em que ele tenta meio que transpor pro nível das imagens o clima noir dos livros policiais que ele ama, levando isso ao extremo.
E há a força que ele imprime. E como, pra ele, é necessário que o desenho reflita a personalidade do sujeito. Inclusive, pretendo abordar isso mais longamente ao longo da série, até pra responder alguns críticos do desenhista Miller.
Em vários momentos das histórias do Demolidor e do Batman ano 1, uma outra coisa que me ficou muito marcada foram aquelas narrações em off que aparecem, nos cantos dos quadrinhos. Houve horas em que eu me sentia genuinamente dentro de um filme do detetive Marlowe, com o Humphrey Bogart narrando e tudo. HAHAHAH
E o Miller acertou em cheio ao banir os “balões de pensamento” e adotar a narração em primeira pessoa. Aliás, ele é um mestre nisso.
Deem (eita!) uma olhada no post que escrevi apontando algumas curiosidades sobre um dos maiores filmes de todos os tempos:
http://darthchief.blogspot.com.br/2013/06/1001-filmes-pra-ver-antes-de-morrer-e-o.html
A Queda de Murdock é uma das poucas HQ’s que conseguem em algumas sequências provocar uma reação emocional profunda no leitor!
Uma das cenas que sempre me chama a atenção é a de Murdock chorando, com as lágrimas escorrendo de detrás dos óculos escuros. Porra, o cara conseguir fazer um herói chorar…
A cena que ele dorme entre os mendigos é porradeira também.
Cara, e a narração da descoberta da cegueira e das novas habilidades dele, usando praticamente apenas quadros escuros, com aquelas letras que passam a sensação de barulho que ele estava sentindo? E as descrições: “as pessoas cheiram como banheiras de suor”?
Miller dava uma obscuridade incrível ao personagem que não poderia ser de outro jeito.
Super aventuras MARVEL era legal, pena que virou revista do Cable. O Demolidor do Frank Miller foi uma das melhores revistas correntes de todos os tempos.
Não há absolutamente nada no mundo inteiro que seja tão bom que não possa ser estragado pelo Cable.
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