PANTEÃO POP – FRANK MILLER (PARTE 2)

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Depois de vermos (aqui) o difícil início da carreira de Frank Miller e como ele chegou ao seu primeiro título como desenhista, chegou a hora de acompanharmos o início do mito.

Dennis O’Neil, depois de conversar longamente com Frank e ouvir suas ideias para o Demolidor, entregou os roteiros para ele. Não era uma loucura: o título continuava com baixas vendagens, bimestral e próximo do cancelamento. Na verdade, era a última tentativa de salvá-lo. Tivesse Miller fracassado, o título – e, talvez, o próprio personagem – teria sumido.

E foi um sucesso. Mas quais os motivos que levaram a esta reviravolta?

Daredevil 168, primeira edição com Miller no posto de roteirista permanente.
Daredevil 168, primeira edição com Miller no posto de roteirista único.

Em primeiro lugar, Miller aproveitou a oportunidade pra amadurecer o gênero. Como dito antes, ele tinha planos de trabalhar com quadrinhos policiais, mas imposições mercadológicas o fizeram ir para os de super-herói. No Demolidor, ele encontrou o ambiente perfeito pra unir as duas coisas. Como já vinha preparando o “cenário” (ou seja, fazendo uma New York cada vez mais suja e sombria), ele não teve problemas de levar as temáticas abordadas na mesma direção.

A clássica Superaventuras Marvel nº 1 (julho de 1982): o Demolidor de Miller seria o carro-chefe durante boa parte da fase áurea do mix.
A clássica Superaventuras Marvel nº 1 (julho de 1982): o Demolidor de Miller seria o carro-chefe durante boa parte da fase áurea do mix.

Ele desenvolveu o Demolidor à margem do resto do Universo Marvel. A grande maioria dos super-heróis foram simplesmente ignorados. Outros, como Luke Cage e o Punho de Ferro, foram levemente ridicularizados. Os vilões poderosos ou high-tech seguiriam o mesmo caminho. Na imaginação de Frank, um sujeito como o Demolidor, que não possui força física sobre-humana, não dispara raios ou usa armadura, jamais poderia interagir com – nem, principalmente, antagonizar – seres fantásticos. Personagens como Nick Fury e a Viúva Negra foram tratados de forma bem mais de acordo com o status quo que exibiam dentro do panteão de personagens da editora.

rei
Os vilões seriam principalmente aqueles encontrados no cotidiano de toda grande cidade americana do mundo real: punguistas, traficantes, estupradores, assassinos de aluguel, mafiosos. Para “dar um rosto” a esta coletividade, Frank reformulou completamente o Rei do Crime, alcunha de Wilson Fisk, um vilão patético que não havia emplacado no título do Homem-Aranha, tornando-o o sujeito por trás da grande maioria das coisas ilegais que geravam lucro na cidade. O Rei tinha em suas mãos políticos e juízes, promotores e policiais, se escondendo por trás de uma fachada pública de empresário bem sucedido.

 

 Mostrando, no entanto, que sabia o que um título de super-herói precisava para funcionar, Miller também deu ao herói um vilão "físico" ao redefinir o Mercenário, tornando-o um psicopata habilidoso sem um pingo de respeito pela vida alheia.

Mostrando, no entanto, que sabia o que um título de super-herói precisava para funcionar, Miller também deu ao herói um vilão “físico” ao redefinir o Mercenário, tornando-o um psicopata habilidoso sem um pingo de respeito pela vida alheia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Matt Murdock, o alter-ego do Demolidor, ganhou densidade. As aventuras eram intercaladas entre suas rondas uniformizado pela Cozinha do Inferno e sua atuação “civil” nos tribunais, no escritório de advocacia e até em sua própria casa. Também foram exploradas suas desventuras amorosas e algumas revelações sobre o seu passado.

Ao mesmo tempo, entrávamos em contato com uma grande variedade de personagens coadjuvantes, entre eles o hilário sócio Foggy Nelson e o azarado bandido Tucão. Destacaram-se também Heather Glenn, namorada de Matt,  e Josie, dona do bar onde o Demolidor gostava de “colher informações”, além do mestre do jovem Matt – Stick –, seus Virtuosos e os principais inimigos destes, o clã ninja assassino conhecido como Tentáculo.

E, claro,  Elektra.

Miller queria mais do que um mero interesse amoroso. Ao criar a personagem, ele apresentou o grande amor da vida de Matt, que ressurgiu em um momento no qual um grande fosso havia sido aberto entre eles por suas escolhas de vida: Murdock havia virado um super-herói e ela uma assassina de aluguel cujo talento logo chamou a atenção do Rei. Frank usou como referência fotos de atletas femininas para retratar Elektra de forma que ela parecesse forte sem perder a feminilidade.
Ao criar a personagem, Miller apresentou mais do que outro interesse amoroso na vida de Murdock, mas o grande amor da vida dele. Frank usou como referência fotos de atletas femininas para retratar a ninja de forma que ela parecesse forte sem perder a feminilidade.

A assassina surgiu já na edição de estréia de Miller como roteirista titular. Mestre precoce da arte do enredo, ele desenvolveu de maneira perfeita o relacionamento conflituoso entre os personagens. Mesmo tendo suas vidas separadas por anos de ausência e pelo abismo entre suas  “carreiras secretas” (Matt é um super-herói, Elektra uma assassina de aluguel), ambos descobrem que se amam profundamente. Trabalhando muito bem o ritmo, Miller sumiu com a  personagem por edições inteiras, trazendo-a novamente à tona quando os fãs já estavam quase urrando. E ousou ao limite: matou a personagem em seu auge.

A chocante morte de Elektra nas mãos do Mercenário, em Daredevil **. Numa época em que era muito pouco comum ver um personagem de quadrinhos morrer, o fim da ninja provocou comoção e protestos, mesmo ela podendo ser qualificada como uma vilã. A violência da luta entre os dois assassinos e da reação do Demolidor chocou os mais sensíveis conservadores. Reparem em dois artifícios utilizados pelos artistas pra driblar o Comics Code Authority: as lâminas não atravessavam as roupas e o sangue era retratado todo negro, como manchas de tinta.
A chocante morte de Elektra nas mãos do Mercenário, em Daredevil 181 (edição com o dobro de páginas – sim, este era um título à beira do cancelamento). Numa época em que era muito pouco comum ver um personagem de quadrinhos morrer, o fim da ninja provocou comoção e protestos. A violência da luta entre os dois assassinos e da reação do Demolidor chocou os mais sensíveis conservadores. Reparem em dois artifícios utilizados pela dupla Miller/Janson pra driblar o Comics Code Authority: as lâminas não atravessavam as roupas e o sangue era retratado todo negro, como manchas de tinta.

Tudo isso, somado às óbvias influências que desfilavam a cada página (sendo a mais destacada a de Will Eisner) fizeram com que tudo funcionasse quase à perfeição. O único porém, na minha opinião, é que, desde que o título voltou a ser mensal, Miller foi aos poucos deixando a arte mais e mais nas mãos de Klaus Janson. Sou fã da arte-final do alemão, mas, sinceramente, o acho até hoje um desenhista bem meia-boca.

Como tudo, de bom ou de ruim, tem que terminar um dia, Miler se afastou de forma abrupta do título no começo de 1983. Aparentemente, ele foi ficando cada vez mais e mais aborrecido com o que considerava falta de apoio da Marvel na sua luta contra a censura imposta pelo Comics Code Authority, que estava vetando suas histórias não pela violência, mas pelos temas abordados.

Página rejeitada por intervenção do Comics Code Authority, que se incomodou com a forma como Miller abordava a questão das drogas. Programada para sair nas edições 167/168, teve que ser totalmente retrabalhada e só foi publicada nos números 183/184.
Página rejeitada por intervenção do Comics Code Authority, que se incomodou com a forma como Miller tocou na questão das drogas. Programada para sair nas edições 167/168, a história teve que ser totalmente retrabalhada e só foi publicada nos números 183/184. Esta página continuou de fora.

Miller se despediu do título na edição 191, com uma história arte-finalizada por Terry Austin intitulada Roleta-Russa. Nela, o herói “conversa” com o imobilizado Mercenário enquanto disputam o arriscado jogo do título. O texto é simplesmente extraordinário:

Miller se despediu do título - em sua primeira passagem - no número 191, com a angustiante história Roleta-Russa, em que o Demolidor "conversa" com um paralisado Mercenário enquanto brinca com o mesmo do perigoso jogo. A arte-final, bem elaborada, é de Terry Austin, um dos melhores do mercado na época. O texto inicial é simplesmente fantástico: "Tradicionalmente, a roleta-russa só precisa de uma bala, uma arma e dois idiotas. No caso, nós. Os dois idiotas se revezam em apontar a pistola pras próprias cabeças e apertar o gatilho. O idiota de sorte vive. Como está sua sorte hoje, Mercenário? Sua vez."
“Tradicionalmente, a roleta-russa só precisa de uma bala, uma arma e dois idiotas. No caso, nós. Os dois idiotas se revezam em apontar a pistola pras próprias cabeças e apertar o gatilho. O idiota de sorte vive. Como está sua sorte hoje, Mercenário? Sua vez.”

Oficialmente, Miller afirmou que apenas não tinha mais o que fazer com o personagem. O que se revelou uma mentira (ou um equívoco), já que ficou faltando ele contar apenas a maior história com o personagem de todos os tempos: A Queda de Murdock (ou Born Again, no original – sempre achei esta tradução brasileira muito escrota!).  Como este trabalho foi abordado por mim neste post aqui, ó! não me deterei mais sobre o assunto nesta série.

Capa de Daredevil 227, onde se iniciou o arco A Queda de Murdock (Born Again). Imaginem: praticamente na mesma época (primeiro semestre de 1986) estavam sendo publicados as edições de O Cavaleiro das Trevas: Miller estava arrebentando nas bancas com duas obras até hoje clássicas!
Capa de Daredevil 227, onde se iniciou o arco A Queda de Murdock, praticamente uma unanimidade quando o assunto é a melhor história do Demolidor de todos os tempos. A arte de David Mazzuchelli casou perfeitamente com o texto de Frank Miller.

Ainda com o personagem, é bom lembrar de Demolidor – Amor e Guerra, história centrada no Rei do Crime que, de certa forma, liga a primeira e a segunda fase de Miller no título do herói cego, mostrando o motivo pelo qual Wilson Fisk passa a odiar tanto o herói.

A arte de Bill Siekiewicz é simplesmente embasbacante. Diz-se que ele trouxe o expressionismo para as histórias em quadrinhos.
A arte de Bill Siekiewicz é simplesmente embasbacante. Diz-se que ele trouxe o expressionismo para as histórias em quadrinhos.

Vamos recapitular rapidamente alguns outros trabalhos de Miller na primeira metade dos anos 80.

Em 1982, foi lançada nos EUA a minissérie Wolverine, que surgiu de um bate-papo entre Chris Claremont e Frank Miller, em que discutiram o que seria a essência de um personagem como Logan. Miller não demonstrou interesse algum até Claremont dizer que o via como um “samurai defeituoso”. Daí por diante, e por horas, eles trocaram ideias sobre como dar profundidade a um personagem sem passado ou memória. Miller, além de todos os pitacos, aceitou desenhar a história, contando com a arte-final de Josef  Rubinstein. Ele aproveitou para, de certa forma, também redefinir visualmente o personagem, embora não tenha mudado seu uniforme marrom.

Em 1982, Miller consolidou sua posição no mercado ao ilustrar a minissérie Wolverine, com o texto de Chris Claremont. A dupla foi a responsável por dar ao canadense uma aura de samurai. Miller também foi o primeiro a desenhar as garras retráteis do mutante como se fossem lâminas em vez de unhas ou no formato cilíndrico.
Miller também foi o primeiro a desenhar as garras retráteis do mutante como se fossem lâminas em vez de adotar o formato de unhas ou o cilíndrico.  Esta minissérie é considerada como uma das maiores histórias com o mutante canadense, ao lado de Arma X, de Barry Windsor-Smith.

Entre 1983 e 1984, Miller dedicou-se a publicar o seu primeiro “trabalho de autor”: a minissérie em seis partes Ronin. Roteirizada, desenhada e arte-finalizada por ele (com cores de sua então esposa Lynn Varley), terminou sendo publicada pela DC Comics. Assim, Miller e editora “testaram” o mercado norte-americano para HQs “diferentes”, com temática mais adulta, texto e desenhos mais elaborados e um formato mais luxuoso.

Ronin também foi assunto de um post escrito por mim e publicado aqui pelos meus amigos do Baile dos Enxutos.

Apesar da predominância da influência dos mangás, fica óbvia uma série de outras influências - e algumas inovações - na obra.
Apesar da predominância da influência dos mangás, fica óbvia uma série de outras influências – e algumas inovações – na obra.

Entre 1986 e 1987, Miller e Sienkiewicz voltariam a trabalhar juntos na série Elektra Assassina. Uma história ácida, com severas críticas aos Estados Unidos e sua política de intervenção. Sienkiewicz foi encorajado a ousar mais e mais na arte – assim como em Demolidor – Amor e Guerra, ele usa principalmente aquarela – inserindo colagens, fotografia e tudo mais o que tivesse nas mãos. O enredo, que parece simples, coloca a ninja enfrentando o líder supremo do Tentáculo, a Besta.

Sempre me perguntam se Elektra Assassina está ou não dentro da cronologia da Marvel. Eu respondo que não se pode afirmar nem que a história exista fora da cabeça da personagem. Há tantos claros momentos de devaneio de Elektra que ninguém pode afirmar com certeza onde eles começam e quando terminam, colocando absolutamente tudo o que é mostrado nas paginas sob suspeita. Leitura estupenda e movimentada, inacreditavelmente desagrada uma boa parte dos fãs dos artistas envolvidos.
Sempre me perguntam se Elektra Assassina está ou não dentro da cronologia da Marvel. Eu respondo que não se pode afirmar nem que a história exista fora da cabeça da personagem. Há tantos claros momentos de devaneio de Elektra que ninguém pode afirmar com certeza onde eles começam e quando terminam, colocando absolutamente tudo o que é mostrado nas paginas sob suspeita. Leitura estupenda e movimentada, inacreditavelmente desagrada uma boa parte dos fãs dos artistas envolvidos.

A Queda de Murdock, Demolidor – Amor e Guerra, Elektra Assassina… O ano de 1986 foi mesmo movimentado (e rico!) para Frank Miller, não?

Opa! Peraí, JJota!!! 1986? Você não está esquecendo nada, não???

tdk

Esquecer, não esqueci. Mas isso vai ficar pra próxima parte…

Até.

 

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 17 comentários

  1. pabloREM

    Belo texto. A Queda de Murdock continua sendo a melhor HQ que já li.

    1. JJota

      Está entre as melhores coisas que já vi na minha vida.

  2. Como sempre, ótimo post, Jota. A Queda também é uma das melhores HQs que já li… Me lembro de, garoto, lendo essa revista umas 200 vezes. A estocada do Mercenário na Elektra me causou um verdadeiro susto. A composição das páginas era perfeita, e deixaram a cena em que ele fura a Elektra em um quadro isolado, sendo necessário virar a página para lê-la. Genial.

    1. JJota

      Cara, eu pirava com aquelas composições do Miller. Engraçado é que nessas cenas da morte da Elektra se pode ter um vislumbre dos caminhos que seriam seguidos posteriormente pelo Miller na arte dele.

      1. Com certeza. Principalmente a narrativa dele, em que ele tenta meio que transpor pro nível das imagens o clima noir dos livros policiais que ele ama, levando isso ao extremo.

        1. JJota

          E há a força que ele imprime. E como, pra ele, é necessário que o desenho reflita a personalidade do sujeito. Inclusive, pretendo abordar isso mais longamente ao longo da série, até pra responder alguns críticos do desenhista Miller.

          1. Colossus de Cyttorak

            Em vários momentos das histórias do Demolidor e do Batman ano 1, uma outra coisa que me ficou muito marcada foram aquelas narrações em off que aparecem, nos cantos dos quadrinhos. Houve horas em que eu me sentia genuinamente dentro de um filme do detetive Marlowe, com o Humphrey Bogart narrando e tudo. HAHAHAH

          2. JJota

            E o Miller acertou em cheio ao banir os “balões de pensamento” e adotar a narração em primeira pessoa. Aliás, ele é um mestre nisso.

  3. Octa Lopes

    A Queda de Murdock é uma das poucas HQ’s que conseguem em algumas sequências provocar uma reação emocional profunda no leitor!

    1. JJota

      Uma das cenas que sempre me chama a atenção é a de Murdock chorando, com as lágrimas escorrendo de detrás dos óculos escuros. Porra, o cara conseguir fazer um herói chorar…

      1. Linik

        A cena que ele dorme entre os mendigos é porradeira também.

        1. JJota

          Cara, e a narração da descoberta da cegueira e das novas habilidades dele, usando praticamente apenas quadros escuros, com aquelas letras que passam a sensação de barulho que ele estava sentindo? E as descrições: “as pessoas cheiram como banheiras de suor”?

          1. Linik

            Miller dava uma obscuridade incrível ao personagem que não poderia ser de outro jeito.

  4. Linik

    Super aventuras MARVEL era legal, pena que virou revista do Cable. O Demolidor do Frank Miller foi uma das melhores revistas correntes de todos os tempos.

    1. JJota

      Não há absolutamente nada no mundo inteiro que seja tão bom que não possa ser estragado pelo Cable.

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