Polêmicas do Youtube – Canal Nostalgia e Direitos Autorais

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Recentemente, o canal Nostalgia sofreu seu terceiro strike do Youtube com base em uma denúncia da Fox sobre o uso indevido de trechos do seriado Os Simpsons – o responsável pelo canal alegou estar dentro da regra do Fair Use. Contudo, a proteção autoral é um assunto extremamente complicado, subjetivo e, claro, polêmico. Apesar de o conteúdo derivado ser de entretenimento inocente, não é por isso que direitos de terceiros podem ser desrespeitados – você pode não concordar, mas é a regra até que seja alterada.

O Caso

O Canal Nostalgia, como o próprio nome esclarece, produz conteúdo com base em obras de entretenimento antigas, basicamente da década de 1980 e 1990. Em um de seus vídeos, o tema foi a série Os Simpsons.

nostalgia

Infelizmente, a Fox, empresa detentora dos direitos sobre a animação, entrou com um strike – o segundo do canal (dois meses antes, o canal já havia recebido uma notificação da Warner sobre outro vídeo). O strike é a forma que o Google criou para se precaver de possíveis processos de propriedade intelectual – quando um canal recebe três strikes, e não consegue contestá-los, ele é deletado completamente.

notificacaoO responsável pelo canal alegou que a quantidade do material utilizada não infringia o copyright, mas o strike foi mantido. Em uma tentativa de regularizar o vídeo, Nostalgia reeditou-o e colocou no ar novamente. Mais uma vez, a Fox interpretou como infração e denunciou a obra, causando o terceiro e fatal strike.

Devido à exposição do assunto na web e após negociações, Warner e Fox decidiram remover a denúncia, mas o Canal Nostalgia não poderia mais utilizar imagens de conteúdo deles.

A Mobilização

Após a notificação, o Canal Nostalgia iniciou uma campanha de sensibilização das pessoas e da Warner e Fox. Tentou contato com as empresas e pediu aos internautas que compartilhassem o caso para quantas pessoas pudessem.

Youtubers de peso (não só os gordos, mas aqueles com muitos inscritos) aderiram à mobilização. Claro que não apenas por simpatizarem com o Nostalgia, mas por serem diretamente interessados no assunto. Afinal, o canal deles poderia ser o próximo.

Fim do canal
Isso não é um vídeo. Não adianta clicar no play…

Neste momento, a internet foi invadida por comentários revoltados, tristes, alegres e, principalmente, inúteis – o que é normal. As pessoas demonizaram a Fox, falaram mal, afirmaram que não iriam mais assistir aos seus programas etc. Diziam ser um absurdo, injustiça, sacanagem, pilantragem, mesquinharia e outros adjetivos cruéis.

Todavia, os internautas esquecem que há regras bem definidas que regulam a matéria. Pode parecer injusto muitas vezes, mas é o que existe para que se tenha o mínimo de respeito e organização. E esta proteção serve tanto para o grande quanto para o pequeno.

Os Direitos

O reconhecimento da autoria de uma obra sempre existiu, porém, sua proteção comercial iniciou-se após o aumento da produção de livros, principalmente em função da prensa tipográfica de Gutenberg – os publicadores pressionaram por algum tipo de proteção sobre o investimento e fechavam contratos de exclusividade com os autores. Em 1709, o Estatuto da Rainha Ana concedeu aos editores o direito de cópia de determinada obra pelo período de 21 anos e, mais tarde, a Revolução Francesa trouxe o Droit d’Auteur. Isso tudo para afirmar que, culminando nos dias de hoje, legalmente uma obra possui restrições em sua circulação. O direito autoral passa a existir uma vez que a obra tenha sido exteriorizada, independente do meio, pois virou uma mercadoria – as ideias não são protegidas por direito autoral, então cuidado com quem você conversa…

No Brasil, há três campos que regulam o assunto: a lei 9610/98, convenções internacionais e acordos contratuais. As convenções (Universal, de Roma e de Berna) são bem gerais, o que não diminui sua importância, mas não influenciam diretamente a questão que estamos tratando – se quiser saber mais sobre elas, clique aqui.

A base legal sobre direitos autorais no Brasil é a lei 9.610, de 1998, embora a proteção à propriedade intelectual seja muito mais ampla. A lei elenca algumas normas importantes para o caso, reproduzidas abaixo:

Untitled-1Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.

Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.

Art. 33. Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor.

Parágrafo único. Os comentários ou anotações poderão ser publicados separadamente.

Art. 46 – Não constitui ofensa aos direitos autorais:

I – a reprodução:

a)      na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diário ou periódico, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos;

II – a reprodução em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este sem intuito de lucro;

III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;

VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

Ao contrário do que se pensa, Internet não é Terra de Ninguém

Em suma, a princípio, qualquer obra para ser reproduzida precisa de autorização, inclusive na Internet, como comprova o “quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas”. Há algumas exceções enumeradas no art. 46, contudo, para o presente caso, os itens I-a e II podem ser automaticamente excluídos, pois Nostalgia não é imprensa e visa lucro. A presença da monetização também inviabiliza o item III. Por sua vez, o item VIII é extremamente importante, pois, de fato, o vídeo não prejudicou a exploração normal da obra da Fox.

copyright law

Aqui entra o terceiro campo de regulamentação dos direitos autorais – os contratos. Todo produtor de conteúdo do Youtube deve (ou deveria) estar ciente da política de copyright da empresa. De fato, ao postar um vídeo, automaticamente aceita as diretrizes impostas pelo Google. Desde que não fira a legislação local ou as convenções internacionais, um contrato é uma ferramenta válida para definir direitos e deveres.

Youtube trabalha basicamente com as autorizações. Ele sempre te pergunta se o conteúdo que você irá publicar possui copyright. Se possuir, você deve ter a permissão de uso. A não existência desta autorização pode ser contornada com o fair use – que, na verdade, se aproxima muito do art. 46, item VIII, da lei 9610/98.

O Fair Use permite que material com copyright seja utilizado com fins de crítica, comentário, notícia, educação ou pesquisa. O “uso justo” vem da legislação americana (se quiser saber mais sobre a lei de copyright, clique aqui) e se baseia em quarto fatores:

1. Objetivos do uso – acrescenta algo ao original ou é apenas cópia?

2. Natureza do material protegido – é factual ou ficcional?

3. A relação do total de material usado com o original – pequenas quantidades e afeta o trabalho original?

4. Efeito potencial sobre o mercado – o uso prejudica o lucro do original?

Na relação com o Youtube, é preciso prestar atenção à legislação local, por estarmos em território brasileiro, e à política de copyright da empresa para evitar qualquer problema relacionado a direito autoral.

Os Erros

O primeiro erro foi reeditar o vídeo e colocar no ar sem antes contatar a Fox. O segundo foi se basear no Fair Use cegamente, sem se precaver do caráter interpretativo da questão. A Fox interpretou como violação e, obviamente, o Youtube não peitaria esta visão da empresa.

Com base no Fair Use, podemos analisar o vídeo produzido pelo Nostalgia da seguinte maneira:

  • Não é apenas cópia – passou no fator 1;
  • O original é ficção – não passou no fator 2;
  • Não foram pequenas quantidades – não passou no fator 3;
  • O uso não prejudica a lucratividade – passou no fator 4.

-the-simpsons copy

O terceiro fator é o mais subjetivo, e, por isso, questionável. Não há um número definindo a quantidade permitida de reprodução; assim, as interpretações variam muito, mas não se anulam. O cálculo para tentar objetivar a questão é surreal (e, ainda, pessoal): envolve a quantidade utilizada e a total da nova obra, a quantidade utilizada e a total da obra original e se o material utilizado tem importância substancial tanto para o original quanto para a nova produção… Ou seja: ferrou.

A interpretação da Fox, desta forma, não está errada, apesar de cruel. Até porque, segundo o próprio responsável pelo Nostalgia, após a reedição, os clips utilizados não poderiam passar de 15 segundos. E 15 segundos para cada clip (que foi mais de um) é coisa pra caramba! Se isso é a diminuição com base no fair use, então o material anterior era ainda mais exagerado… Assisti a outros vídeos deste canal e posso afirmar que, de fato, exageram na utilização dos trechos – a ideia já foi passada, mas as imagens continuam por muito tempo além do necessário.

A Realidade

Devido à facilidade de produção de conteúdo, possibilitada pelas tecnologias digitais, muitas pessoas se aventuram pela rede criando vlogs, blogs, sites etc. A digitalização permite que se copie e cole material de maneira simples e rápida. E toda esta facilidade influencia as pessoas a acreditarem que o conteúdo é livre. E não é.

Vivemos em um período de transição em que antigos paradigmas analógicos dão lugar aos digitais; grandes monopólios perdem espaço para pequenos produtores; conteúdo para todos se segmenta em diversos nichos personalizados. Contudo, as duas realidades ainda coexistem e as crenças constantemente se chocam.

Eu sou da geração de transição, da década perdida de 1980: passei pelo VHS, DVD e Netflix; telefone fixo, Nokia 6160 e WhatsApp; cartucho, CD-ROM e download; LP, CD e MP3; TV aberta, Assinatura e VoD. Estou inclinado para a nova geração e, por isso, também considero que tentar frear o avanço da livre circulação de informação na web é enxugar gelo. Por outro lado, tenho consciência que as coisas não mudam de uma hora para outra e antigos comportamentos custam para sumir.

Os dois erros cometidos pelo Nostalgia poderiam ter sido evitados simplesmente atentando-se para a existência de regulamentação que protege os direitos autorais – sabendo das possíveis infrações, o cuidado seria maior; ou seja: bobeou. A profissionalização através da auferição de lucros envolve não apenas a vontade de criar, mas também todo esse arcabouço normativo.

Por mais que não faça sentido, é o que temos. Concordo que a política do Youtube é um pouco fascista – ela tira um canal do ar devido a uma “suposta violação” (palavras deles), mas temos de lembrar que isso é uma medida defensiva. E este comportamento deveria fazer parte do processo de produção de qualquer um.

A “demonização” das grandes corporações que restringem a livre utilização do conteúdo é uma reação apressada e infantil – no fundo, todos estão defendendo seus direitos, tanto a Fox quanto o Nostalgia. Em momentos como este, ao invés de criticarem cegamente, as pessoas deveriam pesquisar sobre o assunto e tentar tirar proveito. O Nostalgia, após o primeiro strike da Fox, poderia ter entrado em contato com a empresa e tentado uma parceria antes de recolocar o vídeo no ar (obviamente, o vídeo também poderia ter sido feito sem infringir a política de copyright). Seria uma ótima estratégia de divulgação usar a Fox como “parceira oficial”, por exemplo. E se eles tentaram isso, mas sem sucesso, então não colocassem no ar novamente…

Além disso, a restrição não precisa ser vista como negativa – a não permissão em utilizar algum conteúdo pode estimular a produção de material inédito ou, pelo menos, criativamente capaz de mascarar qualquer relação com obras anteriores. Claro que isso é afetado em função do tipo de criação – o Nostalgia não conseguiria fugir das referências.

De qualquer maneira, não é porque discordamos que vamos ignorar. As regras estão aí; se as consideramos ultrapassadas, então nos levantemos e reivindiquemos a atualização da lei – a discussão existe no Congresso. Ao invés dos youtubers se unirem para falar mal da Fox e Warner, por que não divulgar as incoerências das normas ou iniciar uma campanha organizada contra a inflexibilidade do Youtube? Ou, simplesmente, por que não consultar um advogado especialista em direito autoral?

E como sei que há pessoas que param de ler o texto no meio ou pulam para o final, e para os revoltados que se acham injustiçados pelas grandes corporações: eu estou do lado do pequeno produtor; acredito que a Fox errou e o Nostalgia não merecia um strike (no máximo, uma advertência…).

Nelson

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

Este post tem 7 comentários

  1. José Messias

    Eu li o texto até o final, antes que se diga o contrário.
    Como sempre aplaudo a lucidez e didática de seus textos, vc faz jus ao nome do site e eu diria que é quem melhor cumpre a função de “iluminar” os leitores. Dito isso, sou OBRIGADO ética e intelectualmente a dizer só mais uma coisinha.
    No mundo, existem três ações que nunca devem ser refreadas, cerceadas ou censuradas (no sentido de repreendidas):
    Poupar água, fazer um churrasco e demonizar das grandes corporações.
    Você nunca está errado quando faz qualquer uma dessas coisas.

  2. JJota

    Achei perfeita a parte que fala da demonização das grandes corporações. É saco ver posturas do tipo “hay capitalistas? Soy contra!”

  3. Leanddo Raphael

    Acabo de criar um canal no youtube e não tinha conhecimento dos detalhes da lei de direitos autorais, muito obg. Estou com algumas dúvidas ainda. Se eu utilizar um vídeo ou imagem com finalidades puramente acadêmicas no youtube, corro esse risco? Mesmo que eu não receba nenhuma monetização? Posso citar nomes de personagens e relatar históruas sem qualquer imagem ou música? Posso vestir camisetas com personagens em frente as cameras? Essa lei tbm funciona para mangá? Obg

    1. Gustavo Audi

      A lei atua sobre qualquer propriedade intelectual.
      Não há uma definição matemática da quantidade de conteúdo que é possível utilizar sem ferir o direito autoral. A norma é utilizar pequenos trechos como exemplo ou ilustração, desde que não “ofenda” o original ou represente uma quantidade considerada dele (usar 10 segundos de um longa metragem é tranquilo, mas 10 segundos de um comercial de 20 já é irregular).
      O ideal é sempre pedir permissão. Dá trabalho, mas é o correto. No caso do Youtube, recomendo ler com calma as normas deles e, se puder, caso pense em monetizar o seu trabalho, consulte um advogado. No entanto, quando não há fins comerciais, a tendência é deixar para lá, pois não atinge o que é de mais sagrado para o detentor do direito de comercialização: o bolso…

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