Porrada Errada

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Qualquer jogador de videogame que se preze já deve ter, pelo menos, ouvido falar da série “The King of Fighters”, lançada inicialmente em 1994 para arcades e consoles Neo Geo da SNK. A série, inaugurada com o jogo “The King of Fighters” ’94, foi inovadora em inúmeros aspectos, como a jogabilidade diferenciada, por exemplo: os lutadores exibiam novas maneiras de abordar os adversários, como esquivas, e contavam com mais uma barra, que, uma vez cheia (apertava-se três botões ao mesmo tempo) conferiam mais força de ataque ao personagem. Além disso, o tempo de reação dos personagens às pancadas desferidas e animações resultantes criavam uma diferença na jogabilidade que tornavam o game irresistivelmente agradável de se jogar. Aliás, para quem era puxa-saco da SNK, como eu, ver todos os personagens da sua empresa favorita em um único megajogo crossover de pancadas era um tipo de sonho tornado realidade, além de coisa inédita na época, conferindo, pela primeira vez, uma noção de “universo integrado”, bem comum aos leitores de HQs da Marvel, por exemplo, mas até então desconhecido do universo dos games.

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O controvertido cartuchão.
Eu já fui um orgulhoso possuidor desse cartuchão. Só colocá-lo no console já era tarefa pra lutador.

A série começava a criar, então, um meio folhetinesco, que integrava todos os personagens da empresa em uma história comum, que era resolvida por meio de muita porrada. Na edição de 1994, a série começaria com a história de Orochi, uma variante do Deus-Serpente de 8 cabeças, que seria um ser mítico, nascido do próprio seio da terra e desejoso de restaurar o equilíbrio da natureza, destruído pelo aparecimento da humanidade. De 1994 a 1997, cria-se o primeiro arco de histórias, envolvendo as várias manifestações materiais do Orochi e os esforços dos lutadores da SNK em destruí-lo.

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Depois do sucesso da saga, além da colocar no mercado novos personagens bem-sucedidos (time do Japão – Kyo, Benimaru e Daimon), a SNK tentou uma renovação, que se deu no início da saga NESTS, um tipo de “sindicato-criminoso-tecnológico-secreto”, cujo objetivo seria criar um exército de clones baseados no DNA do Kyo e dominar o mundo.

Aí é que começam os problemas.

Se o primeiro arco de histórias consegue ser criativo, ao misturar extratos de mitologia oriental usados como pretexto pra porradaria sem fim do jogo, a uma história de busca pelo poder sobrenatural, contando com novos personagens carismáticos, cujos poderes parecem ter relação com a história central – Kyo e Iori, por exemplo, utilizam os poderes do fogo sagrado e do fogo de Orochi, manifestações mágicas que, além de terem relação direta com o objetivo narrativo do jogo, são visualmente muito bonitas. O arco de histórias NESTS não tem uma história forte e conta com personagens novos extremamente insossos e repetitivos, que podem ser resumidos em seu novo protagonista. Vejamos.

O objetivo principal da NESTS é a dominação mundial. Não há lugar-comum maior e mais batido para os aspirantes a vilões que esse. Para piorar, a NESTS deseja dominar o mundo se apoderando do poder do Kyo Kusanagi, criando um exército de clones, e usando a força de todos os demais lutadores para energizar este exército. Não consigo visualizar a possibilidade técnica disso, nem com a presença do Reed Richards na equipe, já que em nenhuma das fases ou cenários de nenhum dos 3 jogos (King of Fighters ’99, ’00 e ’01) as cenas de combate nos mostram algum tipo de sensor “sugando” a energia cinética e variada dos lutadores.

Que furada, hein, NESTS?

Além disso, o personagem principal deste novo arco, K’, tem relação remota com a NESTS, já que seria um “preposto” desta dentro do torneio, em fase de testes, fruto dos experimentos da organização. O problema é que, como preposto, lhe falta personalidade: seu estilo de luta, batizado pelos criadores do personagem de pure violence, é composto de golpes confusos e imprecisos – demandou tempo até que eu me acostumasse com o raio de ação de seu soco e chute fortes, tortos e sem direção. Sua capacidade de controle de chamas (supostamente adquirida via alteração genética, com o implante do DNA de Kyo) é contida por uma luva (coisa que não consigo entender, já que a pirocinese seria uma habilidade que permite ao fogo ser potencialmente emanado de todo o corpo, como acontece com o Kyo).

Mortais! Olhai como se lançam as chamas, PO44AAH!

Na teoria, K’ seria o protagonista de uma nova saga com a missão de ser um personagem tão bem sucedido quanto os protagonistas do arco de histórias anterior. Na prática, o figurinha se ressente pela falta de carisma e razão de existir. Kyo Kusanagi tem várias razões práticas e rapidamente evidenciáveis: é descendente do clã milenar que selou e manteve sob controle o poder de Orochi, e é um dos últimos membros do clã que ainda pode manipular as chamas, levando a cabo uma tradição milenar, completamente situável dentro do contexto cultural japonês da necessidade de manutenção de tradições seculares. Ao longo do arco, descobrimos que Orochi possui o corpo de seu desaparecido pai, transformando-o em uma marionete, e, consequentemente, a tarefa impessoal de Kyo numa vingança totalmente pessoal. Além disso, este personagem tem personalidade claramente definível: é extremamente confiante sem ser presunçoso, interessado em viver bem a vida, com um grande senso de justiça, além de zelo, pois tem a necessidade de encontrar lutadores mais fortes, que sejam capazes de possibilitar uma melhoria nas suas habilidades para que ele consiga levar suas responsabilidades adiante.

K’, por sua vez, cai em vários lugares-comuns: a velha história do cara órfão, que perdeu a memória e cuja trajetória durante o jogo seria necessária para que ele pudesse atar as duas pontas de sua vida (valeu aí, Machado de Assis). O personagem, por sua vez, é dificilmente caracterizável: percebe-se que ele, no máximo, é alguém sério demais, um pouco cínico e estóico. Personalidade esta que raramente é motivada à medida que vamos desvendando sua história ao longo dos jogos.

K' - O Monótono.
Nosso herói chato, em uma de suas inúmeras poses iguais.

Shiroi Eiji, um dos grandes designers de personagens da SNK, disse que a intenção inicial era a de que K’ substituísse e fizesse tanto ou mais sucesso que Kyo e sua turma. Para isso, a ideia inicial era a de que, inclusive, Kyo & companhia fossem totalmente removidos da saga, ideia essa que foi logo descartada. Comentários posteriores do designer deixaram claro que o personagem não só não seria capaz de cumprir esse objetivo, como seria “raso demais”.

Não sei dizer se a SNK perdeu a mão nas historinhas de “The King of Fighters” por desleixo ou em virtude dos problemas financeiros que a empresa começou a ter, a partir do final dos anos de 1990. Só sei que, apesar de ainda continuar sendo, até hoje, uma aula de como se fazer jogos de luta – sua jogabilidade é impecável e melhora a cada nova edição – infelizmente, enquanto possibilidade narrativa, a série já viveu dias melhores, e, desde o fim da saga Orochi, passa por uma grande fase de dispersão narrativa, com dezenas de personagens lutando entre si, aparentemente sem nenhuma razão realmente forte. Bem-vinda ao mundo de Street Fighter, SNK.

 

Colossus de Cyttorak

Detentor dos segredos da Mãe-Rússia, fã incondicional de jogos da antiga SNK (antes de virar esse arremedo, chamado SNK Playmore), e da Konami, Piotr Nikolaievitch Rasputin Campello parte em busca daquilo que nenhum membro da antiga URSS poderia ter - conhecimento do mundo ocidental. Nessa nova vida, que já conta com três décadas de aventuras, Colossus de Cyttorak já aprendeu uma coisa - não se deve misturar Sucrilhos com vodka, nunca!!!!

Este post tem 10 comentários

  1. MaxRicardi

    e a saga do ash foi ainda mais bosta que a de nests!

    mas é meu jogo preferido, não adianta
    jogo todas as versões até hoje

    1. Concordo. A saga de Ash é tão escrota que merece a total ignorância. Parece um deboche… King of Fighters também é um dos jogos de luta que eu adoro. Minhas edições favoritas são a ’98, ’04 e XIII.
      Abraços!

  2. Respondendo ao Luciano Gardner: realmente, a saga Orochi começa “oficialmente” no King of Fighters ’95. Mas Rugal já fala vagamente da força Orochi na edição de ’94, já que ele fala sobre a busca de uma “força negra”, que o deixará mais forte que qualquer ser humano ou lutador que exista..Essa busca teria levado ele a derrotar grandes lutadores (lembra da estátua do Guile, no fundo da coleção dele? hehehe). No ’95, ele descobre que a “Força Negra” é a Força de Orochi, perde um olho, no processo de absorção da força, e vira Ômega Rugal. Portanto, realmente, oficialmente a saga Orochi começou no ’95, mas ela de fato já tinha começado no ’94, como uma espécie de “teaser” e vaga menção ao que estava por vir.

    Abraços!

    1. Apelão

      Quem tira o olho do Rugal é o Goenitz, aquele cara do ventinho. Chefão do 96

      1. E realmente foi o Goenitz quem tirou o olho do Rugal, mas todas as ações do Rugal, inclusive lutar com Goenitz não foram todo um processo de tentar absorver a força Orochi? Afinal de contas, até o King of Fighters ’96, Goenitz era o que tinha maior domínio da força Orochi. Matá-lo seria absorver muito desta força. Goenitz derrota Rugal mas, como se impressiona com o poder dele, dá um pouco de sua força Orochi pro cara. Portanto, perder o olho pro Goenitz não deixou de ser parte do processo de tentar absorver a força de Orochi. Ambição essa que pra ele só deu merda: ele perdeu o olho pro Goenitz e a mão direita durante a explosão do porta-aviões…

        Abraços!

  3. Luis Eduardo

    Ei cara. O K’ possui o DNA de Kyo, e teoricamente deveria poder utilizar as chama em td seu poder assim como Kyo. Porém as chamas Kusanagi são tão poderosas que ninguem consegue controla-las sem aquela luva. Por isso que K’ usa a luva. Sem ela, ele não conseguiria controlar as chamas e acabaria se destruindo

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