Revista # 10 – Desce, Morte! – Cinema negro e independência.

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Num período em que a América explicitamente segregava aqueles que Simonal viria a chamar de irmãos de cor, Oscar Micheaux desafiou a ordem vigente em Hollywood e dirigiu filmes focados nesse outro então invisível.

Oscar Micheaux: o cinema negro e a segregação racial ocupou o CCBB do Rio de Janeiro, levando produções desse e de outros cineastas do período, bem como produções hollywoodianas da mesma época, como O Nascimento de Uma Nação, em que os negros na história são estereotipados e interpretados por atores brancos pintados de preto.

O evento realmente valeu. Principalmente pelo seu resgate histórico de produções que soam como tesouros de cinemateca. Outros diretores marcam presença na mostra, como Powell Lindsay, Jack Kemp, Brad Osborne, Alan Crosland, Roger Randol e Spencer Williams. Este último nos trouxe uma obra de média metragem, chamada Desce, Morte!, uma pequena e surpreendente produção, cheia de méritos.

A trama é simples. O criminoso Big Jim Bottoms, dono de uma juke joint (espécie de bar dançante) forja fotos comprometedoras para tirar de seu caminho um pastor evangélico que atrapalha seus negócios. O envolvimento da tia de Big Jim acaba em tragédia para ambos.

Algo de noir permeia o filme, talvez a naturalidade do crime e da imoralidade de Big Jim, suavemente inserida na sua comunidade. Os cortes das cenas são secos, algo desengonçados, parecendo carecer de certa continuidade. Ou seria um maneirismo o posicionamento da sua câmera, que, por vezes, deixa a cabeça de fora do quadro, para então subir a câmera e finalmente filmar a ação.

Hoje, tal produção certamente seria relegada à seara gospel, com cenas que atribuíam caráter religioso e espiritual a situações e sentimentos, evidenciando o pastor Jasper como homem honesto, sereno e sério, e Big Jim como glutão, luxuriento, desrespeitoso e indolente. É divertido notar essa antonímia, como nos momentos em que o criminoso  ataca uma galinha assada com as próprias mãos, galinha essa que o pastor é convidado a se servir, embora não mostrado. Como se preservasse a aura elevada e distanciada do religioso, exibindo-o apenas em situações que o favorecem.

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Curioso o fato de o pastor não ser a estrela, mas seu antagonista, o criminoso, atormentado por um crime que não desejou cometer, cuja condenação parece ser maior por sua covardia do que pelo resultado. Um espetáculo à parte sua condenação, aliás. A sequência final, em que sua consciência adquire voz e o tortura com palavras e repetições, numa escalada de loucura e dor, que culmina com visões do inferno e do próprio demônio, num alto contraste que causa asco e estranheza.

Interessado na qualidade do clima e das imagens, que, embora borradas, eram completamente assustadoras, plenas de figurantes que pareciam urrar de dor e desespero em meio a lagos escaldantes, fui pesquisar as referências do diretor Spencer Willliams. Descobri que o maroto surrupiou tais cenas de um filme italiano de 1911, L’Inferno, baseado na Divina Comédia, de Dante.

Safadinho, mas um ótimo filme. Vale a pena aos incrédulos de plantão dar uma bisbilhotada e procurar pela película.

Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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