Assim que terminei de ler o post do Gustavo Audi (esse aqui, ó), fiquei inspirado a também escrever algo nesse sentido. Um texto que retomasse algum momento da infância, como forma de alegoria e lição pra vida adulta, e me lembrei da seguinte anedota…
Era Natal, por volta de 1985, mais ou menos. Videogame? Coisa de rico ou de funcionários de multinacional, como meus tios que trabalhavam na Xerox do Brasil ou no Banco do Brasil, e conseguiram comprar um Atari pros seus filhos. Minha família sempre foi de classe média remediada. Nunca nos faltou nada, mas também nunca tivemos nada realmente caro ou excessivo.
Os desejos eram mais simples, como ter um Genius, ou um robô Ar-tur, da Estrela, movido a controle remoto, e cujas únicas operações eram andar a passo de tartaruga e piscar os olhinhos vermelhos.
No ano daquele natal, meu pai tinha levado a gente ao circo. Foi uma coisa absurda ver os leões flutuando por dentro de argolas e os elefantes bailando ao som dos gritos dos adestradores. Ao chegar em casa, peguei vários brinquedos diferentes: alguns bonecos e construções da linha Playmobil, uns animaizinhos de plástico, e montei meu próprio circo, repleto de reviravoltas, com domadores que flutuavam, desafiando a gravidade; animais que falavam, desafiando os domadores; luzes faiscantes, feitas de sol e persianas sacolejantes.
Meu circo durou inúmeros dias, entrecortados por breves refeições e sonos forçados pelo sempre tilintante cinto de couro da minha mãe. De noite, cabeceira no travesseiro, imaginava novas situações pros brinquedos do dia seguinte.
No final de 1985, fomos passar a noite de natal na casa de uma tia. Eu, já conformado com o natal sempre regular de presentes marromenos, estava sentado num quarto, brincando com meus primos, quando meu pai entra, com um enorme embrulho:
– Olha o que o Papai Noel trouxe pra você!
Abri ansiosamente o embrulho, por dois motivos muito importantes: nunca tinha recebido nada numa caixa tão grande; nunca vi uma caixa fazer tanto barulho.
Era um Playmobil Circo. Uma caixa enorme, contendo um picadeiro, um apresentador, um trailer-bilheteria, arquibancadas, três cavalos amestrados, um domador, dois empregados e uma placa de propaganda. Não dá pra transcrever o nível de felicidade nirvânica que me tomou naquele momento: mal conseguia olhar a foto, quanto mais montar os encaixes simples das arquibancadas. Ao terminar a montagem do circo, não houve brincadeira nenhuma. Fiquei ali, parado, olhando a minha tarefa concluída, como um jovem deus, que olha para sua criação, e vê que ela é boa.
Na noite seguinte também não brinquei. O circo era belo e certinho demais pra ser mexido. Ficava satisfeito em arrumar e recolocar os personagens em novos e diferentes locais específicos, como se fosse tirar fotos promocionais do produto pra fazer encartes de propaganda ou pra embalagem. E essas foram as brincadeiras, um constante realocar de bonecos e cavalos, em várias poses e ameaças de brincadeiras, de modo que, depois de uns 5 dias, todo o conjunto foi parar na grande caixa de papelão: a cova dos brinquedos desinteressantes.
Muitos meses depois, procurando alguma outra coisa, encontrei o circo todo esquartejado, misturado a outros brinquedos igualmente desfalecidos em sua inércia, e resolvi remontá-lo. Descobri que faltavam peças. Várias peças. O pedaço de arquibancada que faltou passou a ser substituído por um banco de um outro conjunto Playmobil; leões de plástico avulsos, com pintura descascada, passaram a fazer parte do show, tendo números próprios. De repente, até um carro falante passou a ter seu lugar no maior espetáculo da terra. Aí sim, meu circo durou vários, inúmeros dias.
A moral da história, nessa anedota, eu levaria pra vida toda: a graça de brincar na vida é se virar com o que não se tem.