Verdade, Justiça e o Jeito Americano: Action Comics #900 e o Superman do século XXI

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Já são quase cinquenta anos desde o lançamento original de Apocalípticos e Integrados (1964), de Umberto Eco. Provavelmente, esta é a obra que melhor sintetizou as pesquisas em Comunicação do início do século XX e que também serviu para definir a figura do Superman e sua importância dentro e fora dos quadrinhos. No entanto, nesse meio tempo, o personagem se modificou de diversas formas, assim como a própria cultura estadunidense.

No contexto sociocultural, o fim da Guerra Fria, o ataque às Torres Gêmeas, a Guerra ao Terror e, mais recentemente, a eleição de Barack Obama e a morte de Osama Bin Laden se tornaram questões determinantes para definir a cultura contemporânea nos Estados Unidos pós-1964. Por sua vez, a acirrada disputa entre as editoras Marvel e DC Comics – com vantagem mercadológica para a primeira –, o advento das megassagas como modelo narrativo, a criação de um universo contínuo ficcional, a Morte do Superman, de 1992, entre outros fatores, também são relevantes para entender as modificações ocorridas na indústria de quadrinhos.

Action_Comics_Vol_1_900_Variant2Neste sentido, o lançamento da edição #900 da revista Action Comics, que debutou com o Superman, em 1938, e a subsequente polêmica envolvendo o segmento no qual o personagem renuncia a cidadania norte-americana são emblemas das mudanças comerciais e socioculturais do Homem de Aço na contemporaneidade. Além disso, as demais histórias dentro da revista também completam este cenário.

Dessa forma, tendo a Action Comics #900 como ponto de partida, acreditamos que seria interessante tecer alguns comentários sobre as novas decisões editoriais e demais iniciativas apresentadas nos quadrinhos e como elas fazem parte de um processo que pode culminar, proposital ou involuntariamente, no estabelecimento de um novo paradigma no que se refere à produção de quadrinhos estadunidense e a produção de subjetividades que a cerca.

 Superman antes e depois

Embora seja um dos grandes relatos sobre o Homem de Aço feitos até hoje pelo meio acadêmico, é importante que se façam certas ressalvas quanto ao período que está sendo analisado por Eco em seu texto sobre o personagem. Até a primeira metade da década de 1960, as histórias em quadrinhos (HQs) ainda não haviam atingido a complexidade narrativa que possuem hoje com a intrincada interconexão dos diversos títulos ou mesmo uma continuidade mais profunda num mesmo título. Assim, os quadrinhos eram basicamente formados por histórias simples de uma edição ou em arcos de no máximo duas ou três edições. Raramente se faziam menções, por exemplo, a fatos acontecidos em revistas anteriores sem a devida contextualização. Sem dúvida, pode-se dizer que o Superman analisado por Eco era uma publicação mais estática.

Criado na era pós-Depressão, para Bradford Wright (2003), o Superman (e outros heróis do período) de certa forma representava – não necessariamente de maneira intencional – alguns dos valores que estavam por trás do New Deal de Franklin Roosevelt. Assim, o lema do personagem na época – “defender os fracos e oprimidos” – ressoava o discurso propagado pelo governo federal, a valorização do “homem comum americano” em detrimento das grandes corporações e seus representantes que haviam levado o país àquela crise em primeiro lugar. Era um embate entre o selfmade man de outrora (agora um burguês inescrupuloso) e o common man – uma metáfora que significaria o verdadeiro povo americano.

Após esse período, os quadrinhos estadunidenses passaram por uma série de transições drásticas de impacto mercadológico e editorial: o boom nas vendas durante a Segunda Guerra Mundial, a queda vertiginosa nos anos que a sucederam e a retomada desse sucesso com um maior “encrudecimento” dos quadrinhos – que passaram a retratar de forma mais explícita a violência e o lado sombrio do homem – o que resultou numa percepção mais crítica a respeito dos mesmos. Wright conta que a opinião pública e os intelectuais da época passaram a enxergar a importância dos quadrinhos para a cultura norte-americana e também seus perigos em potencial.

A solução encontrada pelas editoras, com os heróis agora vistos como “vilões” pela sociedade, foi a autocensura, considerada a única opção frente a um possível boicote ou outro tipo de sanção externa. Nascia assim o Comics Code.  A partir desse período, o Superman virou o “escoteiro” que ele é hoje.  O passar das décadas, ainda nesses primeiros 30 anos de história, ajudou a consolidar a importância do Superman nos Estados Unidos até alçá-lo à condição de mito o que proporcionou a análise de Eco (quem puder, leia o capítulo, mesmo que não seja um acadêmico de Comunicação e demais áreas das Ciências Humanas. Vale muito a pena!)

A partir da década de 1990, como a galera Iluminados bem sabe, o Superman já morreu e até se casou. Embora o imediato pós-Comics Code ainda não tenha visto nenhuma dessas mudanças temporais e narrativas “mais drásticas” citadas acima, as transformações na personalidade do herói foram acompanhadas de um aumento substancial de seus poderes. Se, até a década de 1940, o Superman “só” conseguia dar longos saltos (da altura de prédios), correr mais rápido que locomotivas e ter a força de 100 homens, a partir da gestão de Mort Weisinger como editor da DC Comics, o Homem de Aço passou a ter poderes quase ilimitados. Dessa forma, “aparentemente não havia nada que o personagem não pudesse fazer. O Superman de Weisinger voou através de sóis à velocidade da luz, empurrou planetas pelo espaço e viajou pelo tempo” (WRIGHT, 2003, p. 59). Para ilustrar como foi essa a representação do Homem de Aço que passou para a história é só recordar como no longa “Superman: O filme”, de 1978, ele faz a Terra girar ao contrário. Fazendo o tempo voltar!

 Action Comics #900 e o Superman do século XXI

Lançada originalmente em junho de 2011, ou seja, 73 anos depois do primeiro número, de 1938, a “Action Comics” #900 celebrou a ocasião com uma edição especial com 96 páginas e sete autores convidados. Além de Paul Cornell, titular da revista à época, participaram da publicação Damon Lindelof, Paul Dini, Geoff Johns, Gary Frank, David S. Goyer, Richard Donner e Derek Hoffman. Fora Cornell, cada um deles tenta projetar um traço da personalidade do Superman. Ao invés da ação costumeira – com aquela conhecida pancadaria em níveis titânicos –, são enfatizadas longas reflexões sobre sua função como herói e até jantares informais com os amigos. Num dos últimos momentos do Superman pré-reboot, aqui, além de suas responsabilidades ficcionais, o Superman também é marido, filho e amigo.

Em “The Incident”, Goyer – que na mesma época seria escolhido para roteirizar o longa Man of Steel – narra a ida de Superman até Teerã para participar de um protesto contra o governo de Mahmoud Ahmadinejad. Ele apenas fica parado no meio da Praça Azadi sem se mexer ou falar na frente dos manifestantes durante 24 horas. Mesmo sendo um ato pacífico, sua presença no país é considerada um ato intervencionista e o presidente Ahmadinejad fala em declarar guerra aos EUA. Daí sua decisão de renunciar à cidadania americana.

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Nesta passagem, fica clara a ideia de um herói globalizado e conectado. Superman afirma que acompanha as notícias e sabe que o protesto foi organizado pelas redes sociais e que o controle do governo sobre a internet fez com que enfraquecesse o movimento, inclusive com atos de violência contra os líderes – que tiveram seu anonimato quebrado e foram presos ou torturados. Além da defesa da liberdade de expressão, um dos maiores motivos de orgulho do governo norte-americano, a história faz questão de mostrar que seu cerceamento acontece apenas em um governo ditatorial (uma baita ironia se pensar nos tempos atuais com Sr. Snowden colocando uma bomba na relação do governo norte-americano e a privacidade das telecomunicações da população).

Esses fatos são contados do ponto de vista do Superman enquanto narra para um fictício conselheiro de segurança nacional, nesse ponto o texto de Goyer e a arte de Miguel Sepulveda trabalham para demonstrar como o herói precisa se “rebaixar” dando explicações. É possível ver claramente que nessa situação ele é o errado e que sua decisão extrema é a única forma que encontra de reparar seu erro. Mesmo não fazendo parte da narrativa regular do herói, é possível ver como essa história marca uma mudança de paradigma em relação às histórias analisadas por Eco. O mito se tornou um homem e um homem suscetível ao erro.

Ao mesmo tempo em que desmistifica o herói, essas histórias proporcionam uma volta ao período inicial da “vida” do personagem, no qual ele confrontava diretamente os desmandos dos governantes e demais funcionários públicos. No entanto, a diferença é que claramente o governo estava errado e não o herói. Tanto que, quando ele chega, o agente do governo o recebe com atiradores de elite com balas de kryptonita – a única substância que pode enfraquecer e matar o personagem. E mais, Superman ainda revela que suas ações são um produto de sua própria insegurança:

Enquanto super-herói, protetor de Metrópolis, eu lutei contra toda ameaça imaginável: invasores alienígenas, déspotas viajantes no tempo, rebeldes com todo tipo de fantasia e truques que você possa imaginar. Eu sou bom quando se trata de lutar contra ameaças apocalípticas. Mas e a degradação humana do dia a dia, morrer de sede, de fome, os direitos humanos mais básicos sendo negados?! Eu nunca fui muito efetivo em impedir esse tipo de coisa, desabafa o Super.

Ao final, diante da incredulidade do representante do governo, ele acrescenta: “Verdade, justiça e o jeito americano não são mais suficientes. O mundo é muito pequeno e está muito conectado”.

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As outras histórias, de maneira geral, também falam dessa humanização do Superman, em duas delas o bordão “nós somos/eu sou apenas humano” é utilizado reforçando a metáfora. Na primeira, chamada Autobiography (Dini), Superboy fala com uma espécie de divindade/ser etéreo que, ao contar sua vida e os possíveis erros que possa ter cometido, é surpreendido pela resposta do garoto. E, no segundo, que utiliza Only Human (Donner e Hoffman) até como título, o Superman precisa derrotar um atleta com um traje superpoderoso que acaba saindo de controle durante uma entrevista ao Planeta Diário e que estava flertando com Lois. Após a resolução do caso, Lois pergunta se ele estava com ciúmes e ele responde com a frase já característica.

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Sendo assim, na concepção de seus autores, e para o possível descontentamento de seus leitores, os personagens vêm cada vez mais perdendo uma espécie de “aura mitologizante” e passando a serem retratados como “meros” humanos (independente da linha de sua editora). Fazendo uma rápida comparação com o novo filme, pode-se observar que há uma clara contradição nas duas posições do autor, Goyer. Da mesma forma que, em sua incursão nos quadrinhos, ele tenta desvincular as figuras tão entrelaçadas do Superman e dos EUA, no filme, seja pelo roteiro de Goyer ou pela direção do Snyder, essa ligação é reforçada – mesmo que implicitamente – todo o tempo. Além do mais, não há duvidas de que o polêmico desenrolar final da trama faz uma analogia com a situação americana contemporânea e que, embora seja estúpido dizer que o Superman é o Obama, fica quase impossível não pensar na retomada com força total da metáfora do Superman como os Estados Unidos da América – sua visão intervencionista, a guerra ao terror, o olho que tudo vê (o verdadeiro Big Brother denunciado por Snowden).

Nesse sentido, pensar a controversa renúncia da cidadania de 2011, o reboot de 2012 e o atual estado dos três títulos em que o Homem de Aço figura – mesmo que aparentemente eles possam não ter relação e representar momentos totalmente diferentes – só contribui para uma visão de que o Superman não precisa mais pertencer a América (ter a cidadania, ser um escoteiro, usar cueca vermelha etc.), ele é a América (com seu lado sombrio também). E isso é horrível em termos da mitologia e da construção psicológica do personagem, uma vez que ele se distancia cada vez mais do público em geral (não americano) e de uma visão idealista de herói apolíneo – o último bastião desse tipo de herói na indústria – para se tornar apenas mais um dos macho men que estamos cansados de ver na Marvel só porque, dessa forma, ele seria mais vendável e agradaria mais ao público.

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Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

Este post tem 10 comentários

  1. JJota

    Bom, eu acho o Superman um personagem judiado. E esta versão maravilhosa dele é de chorar de pena…

      1. Não só beijo, @toddycogumelo:disqus, tínhamos também as lentes kryptonianas da hipnose… Mas o melhor poder de TODOS, TODOS, TODOS era o superventriloquismo…

        1. JJota

          Não esqueçam da kryptonita rosa, que o transformava no Toddy…

  2. Maicon Beggi

    Ótimo texto e ótima análise do papel representado pelo Superman nos quadrinhos no passado e atualmente. E como o personagem precisa vender mais (quadrinhos e ingressos de cinema) ele reassume o nacionalismo norte-americano, o que não deixa de ser irônico, uma vez que nos novos 52 ele é intervencionista como as forças armadas americanas (junto da Mulher-Maravilha interfere no país fictício Kakndaq) ao mesmo tempo que o governo americano articula a criação de uma Liga da Justiça América para se contrapor ao Superman e a Liga da Justiça.

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