Códigos Ocultos das Obras de Arte

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Percebi, assistindo a aulas de história da arte, que diversas obras possuem detalhes aparentemente ocultos para mim. São elementos que se não fossem esclarecidos pela professora, passariam totalmente despercebidos. E isso me intrigava, pois boa parte da satisfação de entender uma obra (que nunca será completa, por mais que você a estude) passava por identificar e interpretar estes “sinais”.

Por que não conseguimos identificar facilmente esses códigos de maneira independente? O que faz a obra possuir elementos ocultos, camuflados, secretos? Seria a falta de conhecimento pessoal?

Não somos burros em relação à linguagem da arte. O que ocorre, muitas vezes, é que não fomos “letrados” o suficiente para entendê-la – e isto pode assustar aqueles que pretendem entrar no mundo contemplativo da representação artística. O desconhecimento “linguístico” não é um impeditivo – ninguém nasce sabendo ler, temos de aprender e nos aperfeiçoar ao longo de muita prática.

Parto do conceito geral de Letramento que o define como habilidade de assimilar a lógica gramatical de um meio a ponto de ser possível utilizá-lo minimamente, independente do veículo. O letramento se constitui e reflete o social em que está inserido. Cada elemento da linguagem, ou código, se conecta às características culturais do seu tempo. Uma leitura é configurada diretamente a partir de elementos sociais – entendendo “social” como o conjunto de interações, comportamentos, modas, objetos, pessoas, tecnologias e crenças; ou seja, o tangível e intangível que compõe um determinado período.

Sendo assim, um quadro pintado no século XIX, em pleno movimento Impressionista, carregará em si todo o contexto sociocultural inerente ao período, desde detalhes cotidianos da cidade a relações político-econômicas entre países. E esses códigos estarão representados visualmente na tela, seja de maneira direta ou indireta. Quem viveu a época em que a obra foi criada possui muito mais chance de entendê-la…

Podemos chamá-los, então, de secretos? Acredito que não. De fato, há sentidos escondidos que um artista concretizou de maneira indireta, seja por questões pessoais, religiosas ou políticas. Segredo é uma questão de perspectiva: pode ser secreto para uns e aberto para outros. Por sua vez, todos os códigos são “sociais”, pois refletem um comportamento cultural ou situação histórica (e, aqui, incluo a tecnologia).

Há diversos exemplos de código sob a perspectiva “secreta” na iconografia cristã. Durante o início do Cristianismo (aproximadamente, séc. I a III d.C.), o Império Romano reprimia as manifestações dessa crença, pois batia de frente com a tradição politeísta pagã. Assim, os artistas da época, na tentativa de cultuar seu deus, mas não sofrer as consequências, não representavam a figura de Jesus, e criaram “sinais” que só os cristãos entenderiam a princípio. As primeiras manifestações artísticas cristãs ficavam nas catacumbas e, devido a uma “não importância” da imagem (o fundamental era passar o ensinamento divino), muitas vezes utilizavam letras para representar Jesus.

6 crismon alfa y omega

O Chi-Ro (ou Cristograma), o monograma mais antigo que se refere a Jesus Cristo, era colocado em túmulos para identificar que ali jazia um cristão – no séc. IV, Constantino passou a utilizá-lo como estandarte do exército romano (labarum). Ele é formado pelas duas primeiras letras do nome de Cristo em grego (ΧΡΙΣΤΟΣ): Chi (Xc em português) e Ro (P – r em português). Nas laterais do cristograma, podemos ver mais duas letras gregas: alfa (α) e ômega (ω), início e fim. Ou seja, o próprio Jesus Cristo, começo e término de tudo.

Após a adoção do Cristianismo por Constantino em 311 d.C., a utilização direta de imagens valorizou-se – um dos motivos seria atingir o maior número de pessoas, principalmente as não letradas.  Transposições de códigos foram feitas das pinturas das catacumbas para as basílicas recém adotadas. A utilização de letras gregas para simbolizar Jesus Cristo foi traduzida em imagens. Além do Cristograma, temos as primeiras letras gregas de Jesus Cristo (ΙΗΣΟΥΣ ΧΡΙΣΤΟΣ): IC e XC – primeira e última letra de cada palavra (o “Σ” em grego medieval escreve-se “C”).

No mosaico bizantino de 1190 da Catedral de Monreale, na província de Palermo na Itália, temos do lado esquerdo de Jesus, IC, e do lado direito, XC.

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E representado pela mão direita, a versão imagético-simbólica das iniciais em grego IC e XC: o I no dedo indicador, os Cs no indicador com o polegar e o X no indicador e dedo médio.

ICXC

Eu ouso afirmar que uma variação dessa primeira representação pictórica das iniciais de Jesus Cristo se transformou no sinal de benção amplamente utilizado em obras com temática religiosa. Pode ser uma besteira enorme ou algo já amplamente conhecido, mas não há dúvidas que se aproximam – quem veio primeiro pode ter influenciado o outro…

Dedinhos

Um código cultural aberto, que representa um determinado período histórico, pode ser visto na pintura de Georges Seurat, Dimanch après-midi à la Grande Jatte, de 1885. A obra é um espelho de outra pintura do artista, finalizada em 1884, Baigneurs à Asnières. As duas obras analisadas juntas acarretam toda uma discussão da situação social na Paris do séc. XIX.

Georges Seurat

Contudo, apesar de ser um tema interessantíssimo, quero chamar atenção para um detalhe na obra de 1885: do lado direito, há uma mulher de pé com um macaco em uma coleira.

DETALHE

O que isso significa? Se você não viveu ou estudou a sociedade parisiense do fim do séc. XIX e não conhece os meandros sociais dos bairros, não tem como saber o sentido do macaquinho. A área de La Grande Jatte era conhecida na época como um local para os burgueses arrumarem prostitutas. O macaco era associado à luxúria, logo, ao ser representado lá e junto a uma mulher, passa a simbolizar o estilo de vida de entretenimento sexual pago…

É necessário, para entender a utilização do macaco, ter conhecimento histórico (não acredito que ainda haja algum sobrevivente daquela época…). É um código valoroso que altera fortemente o sentido do quadro. A princípio, poderia ser interpretado com um passeio familiar de domingo, mas a presença deste macaco indica outros significados (muito mais interessantes, diga-se de passagem).

No fim, tudo é uma questão de saber olhar. Uma pessoa pode interagir com uma obra de diversas formas: pelo formato, tamanho, cor, contraste, realismo, temática, história do artista ou da obra etc. É perfeitamente viável que uma interpretação se baseie apenas na questão estética, independente do aprofundamento semântico-gramatical. É fundamental entender que a Arte vai muito além do superficial, da tinta na tela; e é este sentido “camuflado” que dá um tempero especial a obra. Além disso, ainda permite novos entendimentos subsequentes, engrandecendo a obra.

Uma coisa eu garanto: quanto mais você consumir obras de arte, mais aperfeiçoado na leitura ficará e, assim, mais facilmente perceberá esses pequenos códigos repetidos em um artista ou em um período. O próximo passo será movido pela curiosidade: o que eles querem dizer e por que estão lá? Caso a obra não pertença ao seu tempo, então será preciso pesquisar aquele período; caso pertença, então um exercício de afastamento histórico é necessário. De qualquer maneira, é uma ação extremamente gratificante.

Fazendo isso, considere-se oficialmente um nerd da arte…

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Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

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