Haohmaru: ele é pobre, mas é limpinho.

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De todos os jogos de luta da SNK que foram lançados e, tempos depois, virariam franquias bem sucedidas, Samurai Shodown foi aquele que, evidentemente, apresentou o maior número de inovações ao gênero, desde o lançamento de Street Fighter II, no ano de 1991. Street Fighter inovou ao retirar do domínio imediato do jogador o uso de golpes mais fortes, rebuscados ou graficamente diferentes. Pra usar esses golpes, você deveria fazer uma sequência de movimentos na maneta do fliperama (ou no direcional do controle de seu videogame favorito), seguida pelo aperto de um respectivo botão.

Depois de muito tentar, eis que você ganhava uma espécie de prêmio pela sua determinação de adequar a precisão dos movimentos necessários ao timing certo: ver o seu lutador predileto desferir um golpe mágico inusitado ou completamente fodástico e mortal no oponente.  Essa inovação, aliás, virou lugar-comum no mundo dos jogos de luta: quem não se lembra das sequências do Ryu, de Street Fighter? Aliás, a partir de Street Fighter II, suas sequências virariam padrão pra maioria esmagadora de lutadores de todas as espécies de jogos de luta possíveis e imagináveis que viriam depois.

Depois de tentar por mais ou menos uma hora, eu finalmente consegui fazer essa bodega, no auge dos meus 17 anos. HAAHAHAHAH.
Hoje em dia, qualquer ser humano que jogue games de luta atira um hadouken com a mesma facilidade com que respira.

O impacto que a Capcom criou com essa nova forma de jogabilidade, portanto, foi algo absurdamente inédito e inovador. Lembrando do post do nosso colega Jota Jota, sobre Frank Miller (se você ainda não leu, ele tá aqui), da mesma maneira que esse autor criou paradigmas inovadores para os Super-Heróis, tornando esquisita qualquer abordagem posterior diferente da que ele teria estabelecido (como o que ele fez em Batman ou Demolidor, por exemplo), a Capcom conseguiu transformar em obsoleto qualquer jogo de luta que não usasse as famigeradas sequências de movimentos seguidas de botões. Depois de uma revolução dessas, fazer inovações nos jogos de luta passou a ser algo extremamente difícil, e tal revolução foi conseguida pela SNK com o jogo Samurai Shodown. samurai_shodown_reproduction_poster_by_ayce78-d5s91gs.png As novidades impostas pela franquia foram inúmeras. A primeira delas veio pelo próprio direcionamento narrativo da SNK, que ia se especializando cada vez mais na criação de jogos de luta com histórias envolventes, possibilitando um agrado extra pro jogador de seus games: não só teríamos um jogo de porrada bom, teríamos de zerar esse jogo de porrada bom várias vezes, pra podermos conhecer as várias possibilidades de histórias bem legaizinhas.

Não vou gastar o tempo de vocês, leitores, falando da história do jogo por aqui. Só digo que é uma história bacana pacas, que mescla de maneira envolvente a magia de espíritos centenários com elementos da história do Japão feudal, e conta com a direção de arte fenomenal de Eiji Shiroi, designer fantástico e criador de toda a atmosfera medieval que permeia o jogo e de inúmeros personagens da franquia. Quem quiser saber mais sobre a história do game, pode ler aqui.

A segunda grande inovação, essa específica da franquia Samurai Shodown, foi técnica. A jogabilidade foi ampliada com o uso de personagens armados. Além de socos e chutes, os lutadores tinham armas e todo um novo modo de atacar baseado nas armas específicas que combinavam de maneira muitíssimo bacana com o caráter de cada personagem. Além dos agora tradicionais modos de ataque e defesa, teríamos a defesa justa (ao jogarmos o direcional pra trás, no exato momento do golpe do adversário, abriríamos a guarda do agressor, deixando este desprotegido, e prestes a tomar um golpe inesperado).

Outra inovação era a Barra de Fúria (Rage Meter): à medida que você apanhava do seu adversário, essa barra ia enchendo. Quando ela “estourava”, o personagem mudava o semblante (ficava com uma cara de ódio do capeta) e dava golpes com o dobro da força. Essa situação poderia virar completamente o aspecto de uma partida, fazendo com que um lutador que passara a luta inteira perdendo pudesse ganhar o seu oponente com basicamente 3 ou 4 golpes fortes bem dados.

Desce a lenha, meu filho!

Além disso, a jogabilidade ficou ainda mais rica com a criação do modo desarme: o lutador perderia sua arma e consequentemente teria uma queda dramática no poder de ataque. Esse desarme poderia ser conseguido de duas formas: num duelo de forças (quando os dois lutadores davam um golpe ao mesmo tempo) ou defendendo-se de um golpe fatal (a arma é quebrada). Outra inovação foi o acréscimo de animais, que atuavam como coadjuvantes de alguns lutadores (Manaha, o falcão de Nakoruru e Poppy, o Pastor Alemão de Galford), e auxiliavam no ataque aos adversários.

Nakoruru e seu fiel falcão, Manaha

 

Galford e Poppy, o ninjacão.

Fiz aqui um resumo muito porco da maravilha que é jogar Samurai Shodown. Tudo isso, na verdade, pretexto pra falar do meu lutador favorito (e acredito que de muita gente), Haohmaru.

IOOOSHHH!!!

Vários traços da personalidade de Haohmaru são comuns e familiares ao jogador costumeiro: aquele cara que não tem emprego, casa, família. Seu único objetivo é vagar pelos caminhos da vida, procurando por lutadores mais fortes que possam ajudá-lo a desenvolver suas próprias habilidades, dar-lhe desafios e propiciem a ele o caminho pro autoconhecimento. Ou seja, um aspecto comum do modo de vida oriental, onde a busca espontânea pelo autoconhecimento leva à melhoria do conhecimento do mundo. Tal busca requer abnegação, comprometimento e desprendimento total de outras coisas. É quase uma vida monástica, religiosa. Nos games, vários personagens têm esse perfil, alem do próprio Haohmaru: Ryu, de Street Fighter, Terry Bogard, de Fatal Fury, por exemplo, dentre outros. No caso do Haohmaru, o grande diferencial é que ele teria sido claramente inspirado em uma figura lendária e real da história japonesa, Miyamoto Musashi.

Musashi, para quem não sabe, foi um espadachim lendário que viveu num período crítico da história do Japão, quando o bushido – o caminho do guerreiro –, um código de conduta e ética da classe guerreira dos Samurais, começa a entrar em colapso, em parte devido ao número cada vez maior de armas de fogo existentes no país, em parte devido a inúmeros problemas e crises sócio-culturais que não caberiam aqui nesse modesto post. Musashi foi uma espécie de Maquiavel oriental, criando tratados de governança e de filosofia, que lhe renderam tanta fama quanto a de espadachim. Essa, por sinal, era quase lendária: dizia-se que ele teria enfrentado 60 duelos sem derrotas, tipo um Mike Tyson de kimono. Perto do final da vida, Musashi teria se retirado para meditar, transformando-se numa espécie de eremita, buscando o autoconhecimento e, ocasionalmente, atendendo a pedidos de duelos. Esse comportamento do Musashi acabaria se tornando um lugar-comum na cultura japonesa e, consequentemente, dos lutadores de games que vimos aqui.

Miyamoto Musashi

Poderiam dizer que alguém que busca o autoconhecimento não deveria beber tanto saquê quanto o nosso coleguinha Haohmaru (o cara mete bronca numa garrafa a cada começo de round). Além de o saquê ter uma função psicológica, também representava parte do processo de aprimoramento das habilidades. Mostrar-se bêbado antes de qualquer confronto fortalece bastante a arrogância do adversário, deixando-o displicente. Do ponto de vista do aprimoramento, conseguir manter os movimentos e habilidades, sob o efeito do álcool, com a mesma precisão de quando se está sóbrio transforma-se em um desafio. Superá-lo é se tornar senhor de si sob as condições mais adversas. Com todas estas atitudes, percebe-se que o jeito debochado, bêbado e vagabundo de ser na verdade são uma máscara, que escondem um lutador altamente concentrado e comprometido com a honra e com sua espada.

Nosso lutador com sua inseparável birita.

Vemos, então, pelos gestos do lutador, partes de sua personalidade. E aí começamos a entender por que Haohmaru foi um personagem tão bem sucedido na franquia – de fato, ele e Nakoruru são as grandes estrelas da série. Órfão, desde jovem o pequeno Haohmaru era um encrenqueiro. Assim, ele passou a infância e adolescência entre pequenos furtos e brigas com moleques locais, até que um dia (talvez bêbado, sabe-se lá…), ele resolveu desafiar um cidadão caolho, chamado Yagyū Jūbei Mitsuyoshi (personagem também inspirado em um líder samurai que realmente existiu, com o mesmo nome, durante a era Tokugawa do período feudal japonês). 450px-Jubei_Yagyu-4

Apesar de ter perdido a luta, o jovem Haohmaru foi visto por Jubei como um talento promissor, por isso, foi enviado por este pra treinar com o monge Caffeine Nicotine (Musashi também foi treinado por um monge), de modo a lapidar seu talento bruto. caffeine_3618

Apesar de nunca realmente virar um samurai, Haohmaru viria a aprender com Nicotine os valores samurais do bushido, especialmente da honra e do compromisso, transformando seu jeito encrenqueiro em um espírito forte, capaz de ganhar todas as forças malignas que surgiriam durante as várias continuações do jogo, com sua técnica boçal e arrojada. Seu valor como lutador fica tão patente e exacerbado que ele vem a fazer parceria com Nakoruru, um espírito guardião das florestas, na defesa contra os espíritos do mal, vindo a ganhá-los em todas as sequências do jogo. Isso fica claro ao vermos a linha de história do final do jogo do Haohmaru, em confronto com a de todos os outros lutadores. Enquanto os finais dos outros são mais pessoais, demonstrando o desfecho de histórias particulares, individualizadas, o fim de história de Haohmaru sempre é grandioso, demonstrando que o fim dele, como personagem, é uma salvação maior, de todo o mundo do game.

“Vou te dar uma beijoca, mas meu negócio é o caminho da espada, falou? Foi mal, aí.”

Haohmaru atesta, com suas atitudes, um modo de ver o mundo que é muito comum no universo japonês e quase que desconhecido pro brasileiro: o de que o esforço, o comprometimento, em qualquer ação cotidiana, são indispensáveis, e não precisam ser compensados financeiramente (o brasileiro gosta mais de dar um “jeitinho”). Nessa condição, Haohmaru não luta por lutar, ele luta pelo esforço de fazê-lo, e, assim, ganha conhecimento de si através do outro, e passa a ser uma pessoa melhor. Ter honra, em último caso, é ter compromisso. E é isso que acho que é a ideia principal por trás de Haohmaru, uma vida comprometida e devotada à honra (materializada na espada), Haohmaru é a expressão de como um modo sério e comprometido com a vida e com tudo que ela traz, que é o modo japonês, acaba sendo exteriorizado em todas as formas possíveis: até em um inocente jogo de porrada japonês. E justamente por isso que é tão cativante. Pronto. Caguei mais uma regra. Housy, traz o papel higiênico…

Colossus de Cyttorak

Detentor dos segredos da Mãe-Rússia, fã incondicional de jogos da antiga SNK (antes de virar esse arremedo, chamado SNK Playmore), e da Konami, Piotr Nikolaievitch Rasputin Campello parte em busca daquilo que nenhum membro da antiga URSS poderia ter - conhecimento do mundo ocidental. Nessa nova vida, que já conta com três décadas de aventuras, Colossus de Cyttorak já aprendeu uma coisa - não se deve misturar Sucrilhos com vodka, nunca!!!!

Este post tem 12 comentários

  1. toddy

    Socket Suzan! acho que é assim! Haomaru é fodão! eu lembro de um anime que passou na tv manchete! até que foi maneiro

    1. MaxRicardi

      haha é “kogetsuzan”

      esse anime é legal bagarai mesmo

    2. Como disse o MaxRicardi, o nome do golpe era realmente Kogetsuzan! hahahaha. Você quase acertou, cara… hahah! O anime é bom à beça, aliás.
      Abração!

  2. Vilipendiador Unperucked

    Eu gostava mesmo era do Ukyo Tachibana. Era bem mais “efistáile”.

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