Os X-Men e o preconceito nas HQs e contra as HQs

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Aproveitando que os X-Men mais uma vez estão na mídia, um pouco de mimimi dissertação…

Stan Lee, ao escrever o primeiro número do Quarteto Fantástico, lançou aquilo que seria a base do Universo Marvel: heróis com poderes incríveis, sim, mas com personalidades comuns, próximas ao das pessoas “reais”. Se na DC mesmo o humaníssimo Batman era tratado como uma criatura quase divina, as pessoas começaram a ver na concorrência personagens que tinham dúvidas, medo e raiva e que discutiam o tempo todo entre si ou internamente, não raramente com suas fantásticas capacidades se tornando uma demonstração física de seu lado psicológico. Para fortalecer esta impressão, Lee e seus colaboradores (especialmente Jack The King Kirby) situaram as histórias não em cidades fictícias como Gotham City ou Metrópolis, mas em New York.

X-Men 1, de setembro de 1963. Sério, Kirtby? Magneto com capacete de chifrinho do diabo?
X-Men 1, de setembro de 1963. Sério, Kirtby? Magneto com capacete de chifrinho do diabo?

O ato mais ousado neste sentido veio em 1963, quando Lee e Kirby criaram os X-Men. Ao contrário de outros super-heróis que adquiriram seus poderes através de acidentes ou do desenvolvimento tecnológico, os X-Men são mutantes, considerados o próximo grau evolutivo do ser humano. Isso – além de ter sido um alívio pra Lee e Kirby por não precisarem mais bolar origens pra poderes – criou um diferencial impactante: ainda que nem sempre os heróis Marvel fossem celebrados (vejam o Homem-Aranha), os X-Men foram odiados.

Claro que você não deve procurar as primeiras edições dos X-Men tratados sobre isso. Lee e Kirby introduziram o (pré) conceito, mas não o aprofundaram (Charles Xavier, por exemplo, não dava muita bola pros direitos mutantes, mais empenhado em combater Magneto). Mesmo boa parte da celebrada fase Chris Claremont – John Byrne apenas arranhou esta questão (embora eles a tenham escancarado em Dias de Um Futuro Esquecido, último arco da dupla que agora está sendo adaptado para o cinema, e Claremont depois tenha feito uma das graphic novels mais impactantes sobre a questão em Deus Ama, o Homem Mata). Isso – somado a uma das cronologias mais confusas já imaginadas e ao mal provocado pelo sucesso imenso que tornou a equipe fundada por Charles Xavier o maior ícone do massaveísmo de todos os tempos, com centenas de histórias mais rasas que um piso plano – leva algumas pessoas a levantar questionamentos e, às vezes, minimizar o valor da abordagem da questão do preconceito nas revistas X.

The Uncanny X-Men 141. Uma das capas mais impactantes que eu já vi.
The Uncanny X-Men 141, início do arco Dias de um Futuro Esquecido. Uma das capas mais impactantes que eu já vi.

Antes de mais nada, acho que vale esclarecer porque os mutantes são perseguidos e odiados enquanto sujeitos como o Capitão América, o Poderoso Thor e os membros do citado Quarteto Fantástico são celebrados (bom, quase sempre, já que estamos falando de Universo Marvel).  Como dito, os mutantes são uma evolução da raça humana. Toda evolução traz em si a ideia de extinção: o velho deve sumir para que o novo ocupe o lugar deste. Grant Morrison foi perfeito ao – já em sua primeira edição à frente do título New X-Men – introduzir o conceito de “gatilho evolucionário” que levaria a extinção do homo sapiens e sua substituição pelo homo superior em três gerações. Por isso muitos humanos consideram os mutantes usurpadores e crêem que a extinção destes é uma estratégia de sobrevivência.

New X-Men 114. Começa o arco E de Extinção, início da passagem de Grant Morrison pelos mutantes da Marvel.
New X-Men 114. Começa o arco E de Extinção, início da passagem de Grant Morrison pelos mutantes da Marvel.

Gosto desta ideia porque acho o medo o pai de todo preconceito, assim como a ignorância é a mãe. E são eles que nos levam a criar não apenas mais e mais divisões entre nós, como a dificultar ao máximo qualquer tentativa de comunhão entre pessoas que, em essência, nem são tão diferentes entre si.

Eu gosto do conceito dos X-Men justamente porque, de vez em quando, suas histórias espelham absurdos que acontecem ou aconteceram no mundo real, mas que, mesmo dentro da chamada era da informação, grande parte das pessoas continuam a ignorar.

Em Deus Ama, o Homem Mata, graphic novel escrita por Chris Claremont, vemos assassinatos de mutantes perpetrados por pessoas comuns tomadas por um ódio sem fundamento.  Uma clara alusão aos crimes perpetrados pela Ku Klux Klan.

Estudantes negro são escoltados por militares para conseguirem chegar às salas de aula no Ginásio Central de Little Rock, Arkansas, EUA. Uma decisão da Suprema Corte obrigou a dessegragação no Estado, que foi combatida pelo Governador do Estado, que convocou a Guarda Nacional para impedir o acesso dos alunos negros às salas de aula. O presidente Dwight D. Eisenhower dissolveu a Guarda Nacional local e enviou tropas de paraquedistas para assegurar a integridade física e o direito de ir e vir dos alunos negros. Esta e várias outras escolas resolveram, no fim do ano letivo, fechar suas portas a permitir que alunos brancos e negros continuassem a dividr as mesmas salas de aula. Reforço: estamos falando dos Estados Unidos em 1957!
Estudantes negro são escoltados por militares para conseguirem chegar às salas de aula no Ginásio Central de Little Rock, Arkansas, EUA. Uma decisão da Suprema Corte obrigou a dessegregação no Estado, que foi combatida pelo Governador do Arkansas, que convocou a Guarda Nacional para impedir o acesso dos alunos negros às salas de aula. O presidente Dwight D. Eisenhower dissolveu a Guarda Nacional local e enviou tropas de paraquedistas para assegurar a integridade física e o direito de ir e vir dos alunos negros. Esta e várias outras escolas resolveram, no fim do ano letivo, fechar suas portas a permitir que alunos brancos e negros continuassem a dividir as mesmas salas de aula. Reforço: estamos falando dos Estados Unidos em 1957!

Na mesma graphic novel, somos apresentados ao líder dos preconceituosos radicais, um fanático religioso que não hesita em usar o nome de Deus pra se colocar acima das leis e incentivar uma série de crimes cruéis contra os mutantes. Não é preciso lembrar que no nosso país, que adora vender a imagem de paraíso, há inúmeros exemplos de pretensos líderes religiosos que utilizam sua capacidade oratória para ofender e dificultar o acesso a direitos básicos de cidadãos que eles consideram “indignos” ou “impuros”, tendo como alvo preferenciais os homossexuais, considerados por muitos deles como “doentes”.  E que não mudam de discurso, mesmo diante do grande número de atos de violência que são praticadas contra estas pessoas.

Em Massacre de Mutantes, acompanhamos o ataque direcionado aos Morlocks, um grupo de mutantes que, por conta de suas aparências, ficaram incapazes de esconder suas natureza e resolveram viver escondidos nos esgotos e túneis do metrô. Já aqui, podemos fazer uma conexão com os pogroms, a chacina de minorias com a destruição de ambiente em que vivem. Exemplos históricos de tais acontecimentos são a Noite de São Bartolomeu (massacre de protestantes por católicos, ocorrido na França em 1572) e os perpetrados  contra os judeus na Rússia, principalmente entre os anos de 1881 e 1941.

Crianças judias presas como animais em um campo de concentração. Imagens assim me levam a um completo desencantro com a humanidade. Não tenho palavras pra expressar o horror, o pesar a repulsa que tais imagens provocam em mim. É difícil não sentir um nó na garganta...
Crianças judias presas como animais em um campo de concentração. Imagens assim me levam a um completo desencanto com a humanidade. Não tenho palavras pra expressar o horror, o pesar e a repulsa que tais imagens provocam em mim. É difícil não sentir um nó na garganta…

Várias vezes foi abordada nas histórias X da Marvel a obtenção de uma Lei de Registro, que obrigaria todos os mutantes a declararem suas identidades, condição e localização. A Alemanha de Hitler usou tais registros pra localizar e depois prender milhares de judeus, ciganos, eslavos e homossexuais locais, que em sua maioria foram enviados para campos de concentração, onde a grande maioria veio a falecer.

 Também é comum ver as tentativas – quase sempre completamente fracassadas – de Magneto de reagir a violência empregando mais violência. A História está repleta de atos terroristas perpetrados por minorias hostilizadas ou povos dominados contra a sua vontade. A sangrenta história da luta pela independência das colônias europeias na Ásia e na África no século XX possuem diversos exemplos tristes do afirmado.

Charles Xavier acompanha mentalmente a morte de dezesseis milhões de mutantes em Genosha no arco E de Extinção.
Charles Xavier acompanha mentalmente a morte de dezesseis milhões de mutantes em Genosha no arco E de Extinção.

As chamadas “revistas X” também mostram a amplidão do preconceito. Há preconceitos baseados em religião, raça, aparência, idade, natividade, opção sexual, gênero, compleição ou perfeição física, social, nível de instrução, etc.  Não é raro ver em X-Men a abordagem de outras formas de preconceito (como exemplos, Magneto e Kitty Pride são judeus, Estrela Polar e Sina são homossexuais, Cecília Reyes e Bishop são negros, etc.) e até preconceito dentro de um mesmo grupo (os Morlocks por anos foram ignorados pelos heroicos – mas, quase sempre, fisicamente perfeitos – alunos de Xavier).

Agora, mais importante do que tentar espelhar acontecimentos patéticos ocorridos no mundo real,  os quadrinhos da Marvel cumprem um papel digno ao se posicionar em relação a questão: o preconceito é ridículo. E X-Men provou isso quando os Sentinelas se voltaram contra a humanidade. Seu criador olhou para o Molde Mestre e disse que eles deveriam atacar apenas os mutantes, não os humanos. A resposta foi sensacional: “Isso é ilógico. Mutantes são humanos.”

Claro que X-Men é, acima de tudo, um meio de entretenimento. É óbvio que não são desenvolvidos em suas histórias grandes textos filosóficos sobre o preconceito. Há vários escritores que sequer abordam a questão e outros que o fazem de maneira completamente porca ou exaustivamente repetitiva (Claremont, eu odeio você!).  Mas o ponto é que estão lá. E isso tem que ser valorizado.

Ódio gerando ódio: Magneto promete vingança ao encontrar uma família de mutantes assassinados.
Ódio gerando ódio: Magneto promete vingança ao encontrar uma família de mutantes assassinados.

Eu sempre questionei o preconceito (olha a palavrinha aí de novo!) de muitos “adultos” contra os chamados “gibis”, principalmente os que abordam o colorido mundo dos super-heróis. Eu penso de outra forma: o mundo vive uma crise moral cada vez mais intensa. A Lei de Gérson está cada vez mais forte.  A grande mídia ignora os problemas sociais e, quando os aborda, normalmente o faz pelo seu lado “espetáculo”.  E eu, no meio disso, ainda acho que um fã de super-heróis dificilmente irá crescer para se tornar o “vilão” da sua própria história.

Um fã do Batman não pode tolerar assassinatos. Um fã do Superman não pode ser corrupto, sabendo que a sua atividade provocará prejuízo para a população. Um fã do Demolidor não se comportará de maneira inocente diante do problema das drogas. Um fã dos X-Men não pode ser tão completamente tapado a ponto de acreditar em preconceito.

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O ódio gerando seus frutos e se voltando contra todos: nesta cena de Dias de Um Futuro Passado, vemos que os Sentinelas se voltaram contra a humanidade em geral, eliminando diversos super-heróis que não eram mutantes.

É pena que muitas pessoas acreditem que “amadurecer” é se tornar indiferente ou conivente a uma série de fatos terríveis que permeiam o cotidiano.  É pena que as adaptações cinematográficas foquem quase que exclusivamente no aspecto mais massavéio dos personagens. É pena que existam diretores como Zach Snyder e roteiristas como David Goyer que achem que um personagem deve espelhar o mundo podre em que vivemos, se tornando um quebrador de pescoços e destruidor de cidades, em vez de ser o que foi durante décadas nos quadrinhos: um exemplo de retidão moral.

Antes de aceitar o julgamento dessas pessoas e esconder sua Fabulosos X-Men dentro de uma Época ou Veja, lembre-se de que se render a este tipo de comentário sem sentido reforça a ideia negativa que ele passa. Lute, não com armas ou derramando sangue, mas dando a este tipo de opinião o valor que ela merece: nenhum.

“Se minha Teoria da Relatividade estiver correta, a Alemanha dirá que sou alemão e a França me declarará um cidadão do mundo. Mas, se não estiver, a França dirá que sou alemão e os alemães dirão que sou judeu.”  – Albert Einstein, quando indagado sobre a sua opinião acerca do assunto – 

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 11 comentários

    1. JJota

      Particularmente, acho que foi um dos últimos suspiros de criatividade do senhor Chris Claremont. Engraçado que ele tenha chegado neste ponto e, daí pra frente, tenha mergulhado em temas repetitivos e diálogos enfadonhos.

      1. Acho que é o percurso natural de alguém que não se recicla, se acomoda nas suas fórmulas construídas e acaba se acostumando com os puxa-sacos e o dinheiro na conta…

    1. JJota

      Valeu, Reverendo. A questão “quadrinhos de super-herói é coisa de criança” é um tema que me empolga.

  1. charlene_a_empregada

    “Um fã do Batman não pode tolerar assassinatos. Um fã do Superman não pode ser corrupto” Ótimo post Xota Xota, ainda mais em época de espancamentos públicos, onde tive q ouvir que o Batman incentiva vigilantes… Se a moral e ética que tenho hoje valem de alguma coisa, devo agradecer aos vilões que o Batman NÃO matou, às vidas salvas pelo Super-Homem e à rotina fodida de Peter Parker

    1. JJota

      Realmente, esta é uma das coisas que me incomoda (e, provavelmente, será objeto de um post mais adiante): é muito blábláblá que heróis como o Batman e o Homem-Aranha, que não matam, não resolvem os problemas. Uma vez li uma história do Batman, acho que em formatinho, que o roteirista mostrou o impacto do Morcego nas pessoas comuns, inclusive mostrando pessoas que comemoram o aniversário do dia em que nasceram de novo depois de serem salvas pelo vigilante de Gotham. Noutra história do Aranha, em que ele questiona sua importância e os enormes sacrifícios que faz sem receber sequer um agradecimento em troca, Peter é lembrado de todas as vidas que ele salvou, pessoas que estariam mortas, aleijadas ou órfãs se não fosse pelo seu odiado alter-ego. Usei os dois exemplos na minha vida profissional e pessoal e, mesmo com os sacrifícios necessários, devo dizer que fico satisfeito em poder deitar a minha cabeça no travesseiro achando que Wayne e Parker não teriam vergonha deste fã.

      1. Renver

        Hoje eu vejo que escolhi minha profissão influenciado pelos heróis que eu admiro.

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