Ou da importância de um trabalho em equipe.
Que Alan Moore é um dos mais extraordinários roteiristas de HQ que este mundo pútrido já conheceu não é novidade. Analisar uma obra nascida no início de seu vigor criativo (1982-83, tendo sido finalizada em 1988), porém, me levou a conjecturar um pouco sobre o valor de saber trabalhar em parceria.
Segundo o próprio Moore, o desenhista David Lloyd (que colaborou nos mais diversos títulos, como Hellblazer, War Story, Freqüência Global e Sláine) havia sido contratado por Dez Skinn para fazer uma série na revista Warrior e resolveu chamar Moore para escrevê-la. Este, que se encontrava na época “escondido embaixo da cama, tentando aos prantos superar desesperadamente o fato de ter sido rejeitado pela D. C. Thomson”, embarcou no projeto com a energia que tão bem caracteriza algumas de suas melhores obras.
Moore partiu da vontade de escrever uma história com ar pulp, com gângsteres e tudo mais. Frustrado pela implicância de Lloyd, que se recusou a afundar em pesquisas para poder adequar temporalmente seus desenhos, o escritor resolveu se fixar no que fazia este tipo de história funcionar e resolveu ambientá-la no final dos anos 90 (o que, caso ainda não tenham percebido, era um “futuro” na época em que a série foi escrita).
Com a ciência, as ideias podem germinar num leito de teorias, formas e práticas que auxiliam seu crescimento… Mas nós, como jardineiros, devemos estar atentos… Porque algumas sementes são de ruína… e os botões mais iridescentes são geralmente os mais perigosos.
Moore e Lloyd discutiram exaustivamente cada ideia, cada pequeno trecho, cada visual a ser adotado. Por pedido do desenhista, Alan retirou os balões de pensamento (o que era incomum na época) e os efeitos sonoros, mas encheu a história de diálogos, trechos de “diários”, monólogos e música (?!?!) que, sinceramente, pode até ser que eu consiga me recordar de alguma outra HQ com tanto texto que já tenha lido na minha vida, mas vai demorar um pouco.
Tal sintonia me fez refletir que, possivelmente, o que leva alguns autores a se perderem com o passar dos anos é a perda dessa capacidade de trabalhar em equipe ou, simplesmente, o fato de não encontrarem em outro um parceiro que os questione e debata suas ideias. É sintomático ver como Jeph Loeb trabalha bem quando ao lado de Tim Sale, como Claremont nunca mais chegou perto de ser tão divertido quanto na época ao lado de Byrne e como Frank Miller construiu algumas de suas melhores histórias sendo editado por Dennis O’Neil (ok, não é uma relação roteirista-artista, mas é válida). Pena que, com o passar dos anos, o ego (ou seriam quantidades industriais de drogas?) suplanta tudo e o antes brilhante roteirista vai aos poucos se perdendo em seus próprios clichês ou mergulhando em pura escatologia.
Ok, mas passemos a história.
V de Vingança é ambientada em um futuro sombrio, após uma guerra nuclear. Na Inglaterra, considerada “pouco importante para merecer ser bombardeada” (fruto da desilusão dos autores com a política neoliberal de Margaret Thatcher?), o caos imperava até chegar no poder um regime fascista e xenófobo. Quando a história começa, já encontramos o país naquela fase posterior aos expurgos, na qual o povo vive em resignação, vigiado por câmeras 24 horas por dia e os campos de concentração (para onde foram conduzidos negros, estrangeiros, comunistas, homossexuais e outras minorias) já foram desativados. Toda a cultura pop antiga foi erradicada pelo novo regime, que se divide em seções que fazem alusão às suas funções (por exemplo, as investigações são controladas pelo Nariz) e que seguem as diretrizes apontadas por um computador chamado Destino.
Nós tivemos uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um sem número de decisões catastróficas. Isso é inegável. Mas quem os elegeu? Você! você indicou essas pessoas. Você deu a elas o poder para tomarem decisões em seu lugar! Claro que qualquer um está sujeito a se equivocar, mas cometer os mesmos erros fatais, século após século, parece uma atitude deliberada.
É dentro deste ambiente que surge V, que usa uma máscara de Guy Fawkes e que, pouco antes de explodir o Parlamento, salva a garota Evey de um estupro e provável assassinato nas mãos de alguns agentes do Dedo. V tem um plano bem traçado e vai aos poucos derrubando o regime, minando sua influência sobre a população e expondo suas fraquezas. Ao mesmo tempo, vai catequizando Evey, de quem parece esperar algo muito importante, fazendo ela, principalmente, tomar contato com aquela cultura que havia sido banida pelos ditadores: música, livros, desenhos, filmes…
É na terceira parte, intitulada “A Terra do Faça o Que Quiser”, que foi finalizada apenas em 1988, que a história ganha uma profundidade maior, do tipo que merecia ser empurrada goela abaixo de todos os detratores das HQ, que não as consideram um meio “sério” de divulgar histórias e expor ideias.
A felicidade é a mais insidiosa das prisões.
Um pouco de spoilers, mas nada realmente comprometedor.
V toma controle de Destino e declara a todos que as câmeras serão desativadas pelos próximos três dias. Em outras palavras, as pessoas, pela primeira vez em anos, estarão livres da vigilância constante do Regime. Não demora para que surjam pequenas transgressões (como pichações em muros), que vão aumentando gradativamente. Segundo a teoria de V, antes da Anarquia há necessidade do Caos. Para ele, é necessária uma era de Caos para derrubar os antigos líderes e florescer uma nova ordem – a Anarquia – que prescinde destas figuras.
V está indo muito além de simplesmente derrubar um regime. Percebe-se que ele poderia fazer isto rapidamente. Mas sabe que isto seria inútil se não devolvesse plenamente a liberdade ao povo. E nada é mais livre do que abraçar a Ordem por si mesmo, sem necessidade de a mesma ser imposta.
Esta HQ até hoje é um fenômeno pop. Facilmente encontramos imagens associadas a ela no dia-a-dia, principalmente na Inglaterra. Imagens de manifestantes usando a famosa máscara são facilmente encontradas na internet (como não encontrei nenhuma com uma bela garota de minissaia, não me interessei pra postar nenhuma aqui).
Em 2006, os Irmãos Wachowski (Matrix) produziram uma adaptação cinematográfica para esta HQ. Achei um saco e digo que não vale a pena perder tempo com ela. Mas eu gosto de Constantine, embora não o considere uma adaptação de Hellblazer. Logo, cada qual com seu gosto.
Enfim, estamos diante de uma obra extraordinária, que, hoje, talvez tenha seu ar um pouco “maldito” pela forma como encaramos a figura do terrorista. Algo que merece ser lido com vagar (devo confessar que passei mais de um mês para finalizar o encadernado) e profunda reflexão. E também serve para lamentar que, nos últimos tempos, o velhote barbudo esteja mais e mais distante de ideias tão boas e parcerias tão felizes!
Não devemos contar com a maioria silenciosa, pois o silêncio é algo frágil. Um ruído alto e está tudo acabado.
Inglaterra Triunfa!
Post originalmente publicado no site Macacos Robôs Zumbis do Inferno.